Estar na Pele da Júlia Bergman: página 01
Relatos de uma ex garota de programa
Por muito tempo acreditei que não merecia receber amor, muito menos respeito, isso por conta do jeito que aprendi a ganhar a vida, vendendo minha companhia, minha alegria, meu entusiasmo e meu corpo. Não é um trabalho fácil como a maioria pensam, envolve todo um jogo de cintura para se livrar de clientes indesejáveis e situações bem desagradáveis. E antes que você, leitor pergunte como fui parar nesse lugar já vou te adiantando que não foi por vontade própria, mas isso não muda o fato de que sou mulher e mereço respeito, ninguém deve ser tratado unicamente pelo que faz, somos inteiras, com muitas outras partes especiais que talvez você não consiga ver apenas por estar tomado por um sentimento chamado PRECONCEITO e talvez se pudesse enxergar o que tem por trás dessa mulher com certeza iria entender que ela não é só uma garota de programa.
Fui conduzida ao meu primeiro programa pelo meu antigo marido, ele selecionou, conversou e marcou para que eu pudesse me encontrar com esse cliente numa quinta a noite em frente a uma padaria num bairro chique de São Paulo, ele dizia que eu teria de estar vestida como uma mulher rica e em um lugar bom para não ser tratada como uma garota qualquer de programa que os homens sentem asco só de olhar. Eu como boa aluna seguia todos os seus caprichos e acreditava no amor que ele dizia ter por mim e que só estava fazendo isso para o bem do nosso casamento, pois ele precisava de dinheiro para pagar suas dívidas de drogas e todo o meu salário de um trabalhão extremamente cansativo já não era suficiente para bancar sua vida de usuário.
Então venci o medo e me agarrei no que eu sentia por ele, fechei os olhos e fui. Me joguei nesse primeiro encontro e foi realmente muito bom, naquela noite eu ouvi os dilemas de um homem mais velho e solitário tomando um bom vinho e incrivelmente ele também escutou atento os meus sonhos inocentes de terminar a faculdade, me tornar psicóloga, conseguir um bom emprego e mais outros tantos que compartilhei naquela noite. Eu também aproveitei a raríssima oportunidade de ter alguém prestando atenção em mim e desatei a reclamar de como era difícil trabalhar e manter a faculdade com todos os desafios de uma capital. Depois de muita conversa e risos nós fizemos sexo, uma, duas e três vezes. Eu percebi que gostava muito daquilo, também quase não fazia sexo com meu marido, ele nunca me olhava e poucas vezes me ouvia falar com pressa. Depois ele colocou trezentos reais em minha bolsa e me deixou no mesmo lugar onde havíamos marcado.
Meio desnorteada caminhei até o ponto de ônibus e fui para casa, e ele ao me ver logo perguntou pelo dinheiro, abriu minha bolsa sem que eu terminasse de falar e o pegou, disse que eu tinha me saído muito bem e que infelizmente eu precisaria fazer novamente porque ele ainda tinha muitas dívidas a pagar. Eu logo o questionei triste que não queria mais fazer isso, que o combinado era apenas uma vez e então ele disse: - tudo bem se você não me ama, não quer me ajudar, é para a nossa família, você não vai fazer isso por mim? Se fosse ao contrário eu faria por você. Naquela noite entrei no chuveiro, lavei o cabelo e o corpo como se estivesse imunda, tentando tirar uma sujeira invisível, chorei incontrolavelmente. Nunca havia me sentido tão suja, mas porque me sentia assim se eu mesma gostei do encontro, não entendia o que sentia, só queria chorar. Pegava-me pensando que ele nem perguntou como eu estava, se tinha acontecido algo de ruim comigo. O porquê dele não se importar me gerava uma angústia tão grande que não conseguia fazer nada além de tentar agradá-lo, mas mesmo assim ainda carregava comigo aquela certeza no amor que ele dizia sentir por mim e então por esse amor ou talvez a palavra mais adequada para isso fosse “dependência” no dia seguinte estava disposta a tudo o que ele pedisse.
Então chegou a vez de mais um encontro, me dirigi ao mesmo local do anterior e então conheci novamente um homem de meia idade, rico, casado e solitário. Logo percebi o padrão, agi da mesma forma, com gentileza, sendo na maior parte verdadeira, porém não era eu mesma e isso me confundia bastante, agia como se estivesse interpretando um papel, talvez o personagem da amante perfeita. Aquela que ouve, acolhe, o compreende, nunca julga, em hipótese alguma entra numa discussão e faz sexo.
Chegando em casa tudo se repetiu e sem que pudesse perceber continuei cedendo e aceitando cada um de seus pedidos e com todas as suas regras impostas sempre pensando apenas nele. Lembro bem de uma de suas ordens, que era não me deixar envolver, por isso ele fazia interferências para que eu não saísse com a mesma pessoa várias vezes. E para não deixar de registrar algo importante, continuei trabalhando no meu antigo emprego, que era o dia todo e a noite deixava de ir às aulas da faculdade para fazer esse trabalho extra para o meu antigo marido.
Aconteceu que os homens com quem eu saia queria muito continuar me vendo e como ele resistia aos encontros repetidos, os homens ofereciam pagar bem mais e ele extremamente ambicioso, cedia. E eu gostava de estar com as pessoas que eu já conhecia, que se tornaram amigos, eu me sentia mais segura e era ainda mais prazeroso. Eu passei a gostar de fazer aquilo, de ser tão desejada, de me sentir cara, posso dizer de me sentir até amada. Por incrível que possa parecer, eu me sentia amada e cuidada em cada encontro muito mais que em casa. Na verdade não dá para ter essa comparação porque em casa não existia mais nada de bom.
Com alguns meses sem ir à faculdade e apesar de está entrando muito dinheiro através do meu trabalho extracurricular, eu nunca podia ficar com um centavo sequer, então não conseguia pagar os 30% da mensalidade pelo fies, infelizmente acabei desistindo e com isso adquiri uma dívida bem gordinha no banco. Mas a única coisa que me importava naquele momento era a restauração do meu casamento. Então continuava vivendo essa relação abusiva e doentia.
Uma hora comigo valia muito mais que qualquer dinheiro pago, era uma carga de boas energias, trocas, conversas, acolhimento. Não se tratava apenas de sexo, na verdade isso é a menor parte do conjunto para aquele cliente que chegava cheio de problemas, um pouco triste, desanimado e sem saber o que fazer com trabalho, casa e família. Então ele me encontrava e por algumas horas voltava a se sentir bem. Era satisfatório perceber a diferença de como eles entravam e saiam completamente diferentes. Nunca precisei pedir ou ajustar um valor, eles sempre pagavam o acertado ou mais, até diziam que era um investimento para o bem pessoal e também do casamento. Sem contar nos presentes, que eu precisava esconder para não ser descoberto algum tipo de envolvimento. Quase me esqueci de mencionar que 90% deles eram casados e todos amavam muito sua esposa e família, por favor, não pensem que isto é mentira porque eles realmente amavam e o fato de querer algumas horas comigo não diminuía isso nenhum pouco.
E, pela primeira vez numa noite, o vi cheirar um pó branco na casa do nosso vizinho que morava no andar abaixo. Não posso descrever o que eu senti naquele momento, foi como se estivesse sendo traída, até o momento acreditava que aquele dinheiro que ele me fazia trazer para casa fosse para pagar as dívidas acumuladas e não para que ele continuasse a usar aquilo. Eu fiquei muito enjoada, perdida, decepcionada, fiz vômitos, sentia dor no corpo e então deitei, já era quase meia noite quando o vizinho bateu na porta e o chamou para irem em algum lugar. Continuei na cama pensando em cada detalhe do que estava vivendo e no dia seguinte quando ele me deixou no trabalho, pedi que não me esperasse em casa e que iria para casa do meu irmão e nunca mais queria vê-lo.
Só que no fim do trabalho voltei arrependida para casa e não o encontrei, não comi nada e fui dormir. No outro dia fui para o trabalho com um mau pressentimento, estava com medo de algo ruim acontecer a ele, me sentia culpada e sem saber o que fazer liguei para sua mãe e informei que ele tinha sumido já havia dois dias, ela logo se desesperou sabendo bem com o que o filho se envolvia e pediu para que eu fosse na delegacia. Na noite daquele dia, ela o encontrou escondido na fazenda da família, e então foi levado para um centro de recuperação em outro estado, o único que ele topou ir.
Ainda convivendo com toda a culpa possível de ser sentida, acreditando ser a pior esposa do mundo tentava contato com ele no centro de reabilitação, mas não conseguia falar, o único meio que obtinha notícias era através da mãe dele que me fazia sentir ainda pior. E quando pensei que fosse o bastante, recebi uma ligação de um homem que parecia me seguir e conhecer minha casa, falou que o meu marido fugiu devendo uma quantia considerável de dinheiro a ele e que sabia da minha inocência, mas precisava do dinheiro ou de notícias sobre seu paradeiro. Então eu, com muito medo e sem saber o que fazer, passei o contato da mãe dele que resolveu quitando a dívida.
Depois de entender tudo o que se passava e amedrontada com a ligação recebida, decidi que o único meio de sair da casa seria tendo um encontro para conseguir quitar o aluguel e ir embora. Então sai com um homem que já era cliente e no outro dia já estava me mudando para a casa do meu irmão. Também consegui mudar de emprego e isso me deixou mais aliviada porque tinha muito medo de fazer os mesmos trajetos, de encontrá-lo novamente.
Hoje, tenho consciência do abuso, da violência e da exploração em que vivi, a que me submeti, e das marcas que ficaram eternizadas em mim. Sinto-me guerreira por ter saído desse mundo da prostituição, por ter me reconstruído diante dessa experiência que poderia ter sido devastadora. O relacionamento abusivo destrói, ele tira toda a razão, autoestima e dignidade de uma pessoa. Ele mata.
Com toda a dor de ter vivido essas experiências ficaram como recompensas grandes amigos que me apoiaram e me ajudaram a sair desse meio o mais rápido possível e os guardo com muito carinho em minhas lembranças, hoje me pego rindo ao recordar alguns acontecimentos. Passei muitos anos remoendo aquele mal, acumulando raiva por ter me permitido tamanho desafeto, mas hoje sinto como uma ferida que já está cicatrizada. Não dói, não machuca nenhum pouco lembrar tudo que foi escrito, na verdade só consigo enxergar a força que tive e a potência que sou como mulher resiliente.
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Júlia Bergman
Olá, sou a Júlia e esse é o meu diário aberto, obrigada por sua curiosidade em saber quem sou! Aqui é onde compartilho um pouco das minhas loucas experiências, conflitos, dores e alegrias.
Brasileira morando em Portugal, de alma leve e coração cheio.
Com a mente sempre aberta para novas descobertas.
Dedico-me a passar cada dia com respeito, carinho e afeto depois de superar uma grande depressão e ter recuperado a incrível vontade de viver.
Nosso desejo sexual pode variar ao longo da vida e isso não é um problema. Dependendo da nossa rotina, da nossa saúde física e mental, da nossa idade, da nossa sensação de bem-estar, dentre outros fatores, podemos estar com maior ou menor libido, sem necessariamente ter algo de errado. Mas quando essas alterações se tornam persistentes e prejudicam a vida da pessoa, algo deve ser feito para reequilíbrio do organismo.