Às infinitas possibilidades de ser mulher

Inicio essa coluna com uma pergunta: existiria uma definição do que é uma mulher? Desde o convite para escrever essa coluna me vi às voltas com essa pergunta. 

Muitos textos de psicanálise me vieram à cabeça – nos outros textos que escrevi para essa página, me inspirei na psicanálise, que me serve de direção no trabalho. Dessa vez decidi que não iria por esse caminho e que faria um percurso pessoal. Mais livre, talvez.

Quantas meninas e mulheres presentes em minha trajetória que a escrita desse texto me fez relembrar: mulheres da minha família, dos tempos de colégio, faculdade e as que conheci por meio do trabalho e outros lugares onde estive.

Foto: Greg Rosenke / Unsplash

Minha avó que viveu 105 anos, quem passava as tardes comigo e com meu irmão depois da escola, enquanto minha mãe trabalhava. Ela falava do tempo em que era costureira do Mappin (antiga Loja de Departamentos) e de como conheceu meu avô, no bonde que ambos tomavam após a jornada de trabalho. Meu avô ferroviário. Minha avó costureira. E de seus esforços, minha mãe se tornou engenheira, vejam só: em plena década de 60! Minha mãe contava com orgulho que em seu tempo havia apenas banheiro masculino na faculdade e em sua turma apenas ela e mais uma colega. Quando precisavam ir ao banheiro pediam a chave daquele usado pela bibliotecária. 

No colégio lembro de uma maioria de professoras mulheres. Lembro das minhas primeiras amizades com as meninas. Depois o tempo da adolescência, o tempo de compartilhar as conquistas e as dores do amor. A primeira balada foi com amigas da infância, com quem antes ia ao clube. 

Quando mudei de colégio, logo encontrei uma amiga do tempo do berçário. Outra com quem acampei e junto com uma nova amizade construída ali, formamos um grupo, que dura até hoje, o qual chamamos de As Companheiras porque nos identificamos com um certo jeito de estar no mundo. Foi também no colegial que conheci outra grande amiga e sua mãe, chef de cozinha, que me encantavam por me mostrar um outro mundo: uma mãe que cozinhava, fazia festas e criava fantasias – habilidades transmitidas à filha. E tantas outras se seguiram, algumas delas se tornaram militantes políticas, outras empresárias, outras empreendedoras, arquitetas, psicólogas...

No cursinho, na companhia de amizades do colégio, conheci uma nova amiga que me acompanha até hoje, de traços delicados e de uma genial capacidade de levar a vida com leveza e humor. Na minha primeira faculdade, Jornalismo, encontrei uma grande amiga, com quem fiz a primeira entrevista, quando ela me conta sobre seu avô escritor. Depois conheci sua família baiana e alemã, e suas amigas de escola. Laços afetivos que fazem parte de minha vida até hoje. Acompanharam um amor de verão; quando me tornei mãe; minha separação e são presença na vida de minha filha de 8 anos.

Na segunda faculdade, encontro novas amizades preciosas, que também me acompanharam no novo percurso profissional que havia escolhido: Psicologia. Quando engravidei, era a primeira daquela turma. Quando me assustei com a maternidade elas estavam lá segurando a minha mão e depois também a minha filha. Hoje dividimos nossas diversas experiências na maternidade, na profissão e na vida.

E ainda na faculdade e em minha formação encontrei professoras com as quais me identifiquei e me ajudaram a trilhar um caminho nesse desafiante trabalho de escutar a dor (e as conquistas) dos outros. Não só nisso me serviram de inspiração. Também encontrei nelas uma dedicação e escuta generosa dos impasses da profissão. 

Durante o tempo de faculdade, trabalhei em uma loja de bolsas criadas por uma artista plástica. Depois em uma loja de roupas femininas, caracterizada pela mistura de estampas e cores. Nelas encontrei um mundo feminino, no qual o horóscopo, dicas de maquiagem, looks tomavam conta de nossas conversas. E também as ambições de cada uma.

Aliás, foi em um dos trabalhos mais desafiadores da minha trajetória até agora, quando trabalhei em uma política pública voltada para usuários de substância, que encontrei outra amizade preciosa. Eu a conheci falando do quão difícil era aquele projeto e os efeitos em sua vida pessoal. Depois de escutá-la, disse que não seria daquele jeito comigo porque já havia passado por um outro tipo de ambiente político: o mundo corporativo. Ledo engano. Dali poucos meses, ou poucas semanas, lá estava eu amedrontada e dividindo minhas aflições. De lá fui para um serviço público voltado para saúde mental, onde também encontrei mulheres corajosas para lidar com a vulnerabilidade. Depois fui trabalhar em um hospital, onde também encontrei mulheres valentes e criativas na forma de trabalhar diante dos desafios colocados pela Covid-19. 

Em um grupo de estudos, encontrei outras mulheres e porque nos identificávamos em nossa posição, criamos um grupo, o Batalhão. Desse grupo, inclusive, veio um convite generoso e também desafiador de escrever um texto para um livro com textos escritos apenas por mulheres: Perché mi piace. O convite era simples: escrever sobre o que quisesse. Mas basta se ver livre que surgem os impasses, não é mesmo? Para esse texto que escrevo, tomo um dos artigos. Escrito por aquela com quem dividi uma casa e a vida por quase três anos, minha marida, como nos chamamos. Não porque vivemos um relacionamento amoroso, mas porque criamos nossos filhos juntas naquele tempo (e ainda cuidamos deles, mesmo separadas) e compartilhamos uma casa e os afetos. Lá fazíamos encontros com outras amigas, chamados de Mesa da autoestima. E o que fazíamos? Falávamos dos homens e mulheres que nos relacionávamos, em especial dos desencontros desses encontros. 

Em seu texto, ela fala do laço entre a mulheres: a sororidade. Termo cunhado pelo feminismo, como ela nos conta, que tem origem na palavra Soror, que em latim significa “irmã” e também usado para denominar as freiras. Diferente da competição em que somos usualmente, e equivocadamente, colocadas, esse termo denota um laço fraterno, de companheirismo e testemunho de nossas existências. E o usa justamente para contar das coisas que as mulheres fazem quando estão juntas, mas que não servem para nada, no sentido de utilidade, mas que nos servem para estruturar e suportar as outras atividades da vida. Com ela formo um grupo de mulheres hábeis, como assim nos descrevemos, e nele encontro o poder da escrita, do humor e da posição feminina.

Se a psicanálise fundamenta que a mulher é não toda, porque a ela lhe falta algo dentro da lógica fálica, penso que isso nos traz infinitas possibilidades, conquistadas por movimentos de mulheres que nos antecederam e pelos coletivos que formamos hoje, o que só é possível quando identificamos que somos todas desejantes.

No texto “Profissões para mulheres”, escrito em 1931, Virginia Woolf nos diz:

“Mesmo quando o caminho está nominalmente aberto, – quando nada impede que uma mulher seja médica, advogada, funcionária pública – são muitos, imagino eu, os fantasmas e obstáculos pelo caminho. (...) essa liberdade é só o começo; o quarto é de vocês, mas ainda está vazio. Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido. Como vocês vão mobiliar, como vão decorar? Com quem vão dividí-lo e em que termos? São perguntas, penso eu, da maior importância e interesse”.



Não esquecendo dos amigos, parceiros e amores, com quem também compartilho minha trajetória, dedico esse texto às mulheres que me acompanham em tantos grupos, de Whastapp mesmo – eles também servem como coletivos – derivados de nossos encontros na vida “real”: Grupo de Apoio, Grupão de Apoio, Chicas, Batalhão, Companheiras, Hábil da limonada, Santas, Pândegas.

Termino com uma música que me emociona toda vez que a escuto. Escrita por um homem sensível e genial, Milton Nascimento:

“Maria, Maria é um dom, uma certa magia

Uma força que nos alerta

Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta”


Somos todas Marias e merecemos viver e amar como tantos outros do planeta.



***

Silvia Cavalcanti - Colunista convidada

Psicóloga e psicanalista, com atuação em consultório particular e, atualmente, também trabalha como psicóloga hospitalar. Com experiência em políticas públicas da Saúde e Assistência Social, interessa-se pela multiplicidade das formas de viver.

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