Brincando com o Gigante
Um dia desses, na cidade onde moro, vi o gigante com raiva. Muita raiva. Tivemos uma tempestade muito forte, que durou cerca de uma hora. Sem pausa. Sem afagos. Sem pena. Um volume destes de água, caindo sobre uma cidade impermeabilizada de concreto, causa um tremendo estrago.
Foi uma daquelas tardes que você fica torcendo para que acabe logo, sabe? Só isso que dá pra fazer quando um gigante briga contigo: você torce pra acabar logo e sobreviver. Você pensa nas pessoas que gosta, liga para aquelas que ama. No meio da briga, não dá pra fazer muito mais que isso.
Até que chega uma hora que acaba.
Durante a briga fiz algo que raramente faço: liguei no noticiário para ver em tempo real o que estava acontecendo pela cidade. E as notícias, que normalmente não são boas, eram ainda piores. Traziam imagens de caos, desespero, sofrimento e medo. Medo. Senti isso durante a tempestade. Apreensão, fragilidade, perda de controle, ansiedade, curiosidade. Ao mesmo tempo, alívio por eu estar seguro, na minha casa intacta, minha filha protegida na escola com seus coleguinhas e minha companheira bem longe dali, aproveitando um dia de calor com sua família. Senti o alívio sagrado de ver minha família segura.
Pura sorte.
Vinte e quatro horas antes, eu estava com a minha filha no mesmo lugar que, agora, jorrava água como em uma corredeira, com carros boiando e pessoas lutando pela vida. Tive sorte. Desta vez.
Não tem como passar por isto e sair ileso emocionalmente. Aqueles que sofreram danos então, nem se fale. Tanta gente falando e repetindo que somos geniais, maravilhosos, espécie incrível e, na primeira briga com o gigante, viramos bonecos boiando no mar, sendo levados pelo vento.
Até que ponto não nutrimos uma imagem inflada de nós mesmos? E se a gente precisar dessa imagem inflada pra viver? E se não soubermos como viver sem alguém nos dizendo que somos especiais?
Talvez sejamos muita coisa ao mesmo tempo. Geniais, desamparados, tontos, arrogantes, felizes, caridosos, teimosos, corajosos. Este é o paradoxo, a imperfeição, a falha, o ruído, o buraco, a mancha, a tontura, o azedo. Acho este o esquisito e o fascinante da vida e de ser humano nesta vida.
A natureza é gigante. Está aí desde sempre e sempre estará. Com a gente ou não. O pulo do gato é que nós também somos natureza. A nossa capacidade de intelectualizar, pensar, imaginar, projetar, cria uma falsa sensação de estarmos de fora. Tem a natureza, e tem nós. Lá e cá. Ledo engano. Tem uma coisa só, interligada, se alimentando, se consumindo, se afetando. Por isso acho o termo mudanças climáticas parcial. Prefiro mudanças sistêmicas.
Acho também esta uma relação desproporcional. O interessante e cruel de pensar, é que o meio ambiente, o clima, a natureza, não se importam, nem por um segundo com a gente. A natureza não precisa da nossa espécie. Às vezes parecemos meros intrusos, insetos nos ombros de gigantes, e olhar o gigante de perto é isso mesmo. Nos traz de volta ao nosso lugar.
Conseguiremos mostrar a adaptabilidade mágica que a vida na Terra tem mostrado nos últimos bilhões de anos? Se sim, como sairemos disso? A que custo? Dá tempo de fazer alguma coisa? Por onde começamos?
Enquanto tentamos limpar a sujeira, que tal também brincar um pouco com o gigante? Artes, esportes, crianças, amores. O leve da vida também está aqui, afinal.
Quem sabe não conseguimos fazer algo interessante das nossas vidas enquanto ainda estamos por aqui?
***
João Paulo Ferreira
Coach ontológico, pós-graduado em Finanças pelo Insper e executivo do mercado financeiro.
Apenas um desabafo criativo de um escritor frustrado, na perspectiva de seu eu lírico