A sexualidade como organizador social por Laura Bing
Para pensar a sexualidade, poderíamos recorrer a diversas áreas para interlocução. Poderia ser usada a biologia, as artes, a política e etc. Mas, por causa do meu trajeto, escolhi as minhas referências: as ciências sociais e a psicanálise. Meu ponto de partida são: o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908 - 2009) e o antropólogo polonês Bronisław Malinowski (1884 - 1942). Além de buscar em Sigmund Freud (1856 – 1939), psicanalista austríaco, os pontos de encontro e desencontro entre essas áreas de estudo e compreensão do comportamento humano.
Ao falarmos tanto de sexualidade quanto de ciências sociais e psicanálise, é importante termos em mente que estamos falando sobre um grande pano de fundo deste cenário: a cultura. Freud desde o início de sua obra traz o contexto social como indiscriminável da compreensão dos sofrimentos que apareciam em sua clínica, pois os modelos de aparelho psíquico são construídos à luz dos fenômenos normais e patológicos de cada cultura.
Na psicanálise, é impossível - e indesejável - abordar sexualidade sem abordar o famoso “Complexo de Édipo” - aquela famosa história grega com uma dupla tragédia: Édipo mata seu próprio pai e casa com sua própria mãe.
Apesar da fama popular de que a psicanálise só fala de sexo no divã, é necessário compreender que ao falar de sexo e sexualidade está, na verdade, falando de cultura. E por cultura, devemos compreender a introdução do indivíduo numa noção de sociedade com regras e limites. Sexualidade, quando organizada num sentido cultural, significa que estamos falando de pacto social. Isso significa, nessa organização, que algumas noções culturais vão contornar o que é tido como “natureza” para que ele se transforme em “social” como, por exemplo, a proibição de determinadas relações: as consanguíneas. Podemos pensar que assim surge o entendimento de moral, de família, de parentesco e também da lei. Para Lévi-Strauss, em Estruturas elementares do parentesco: “a proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consanguinidade ao fato cultural da aliança”.
No artigo de Hélio Pellegrino “Pacto Edípico e Pacto Social (da gramática do desejo à sem-vergonhice brasílica)”, publicado em 1983, o psicanalista brasileiro parte da tragédia de Sófocles para fazer uma leitura dos desejos, nas instâncias individual e social. A partir da interdição paterna, de acesso irrestrito ao desejo pela mãe, veremos que esse movimento inaugura o indivíduo na cultura, na sociedade, sendo a figura do pai metaforizada no Estado. A lei, portanto, torna-se desejada enquanto proteção dos indivíduos mas também temida. Assim, a cultura será um reflexo do nosso primeiro pacto, o edípico.
A sexualidade revela a extrema plasticidade, principalmente nos objetos que buscamos satisfação. E falar do Complexo de Édipo é falar de uma “fábrica de subjetivação sexuada”, no sentido de que é uma máquina que, a partir da sexualidade infantil, produz a masculinidade e a feminilidade. O que o Complexo de Édipo na verdade aponta é que ao ter interdição da própria mãe, existe a oferta de todo um mundo lá fora. A proibição seria, na verdade, fabricação de um indivíduo que deseja. Porém, essa subjetivação irá esbarrar em outra especificidade do Complexo de Édipo que é a proibição do incesto, cuja interdição anuncia uma “dança triangular” que estabelece relação entre o modo específico que se dá essa subjetivação e as injuções da cultura.
Se a criança renuncia, aliás, troca sua pulsionalidade incestuosa para estabelecer um pacto de convivência e, a partir daí, construir seus desejos fora desse circuito pulsional. Na psicanálise, é essa espécie de “repressão sexual” que se desdobra em conflitos psíquicos e, assim, em sintomas. O sintoma, portanto, é socialmente construído, o que quer dizer que o sofrimento humano é o apontamento da cultura que estamos inseridos.
De qualquer forma, Freud vai utilizar o totemismo como sistema de evitação de algumas práticas, inclusive de relações incestuosas. Chega inclusive a aproximar o totemismo da Igreja Católica, que também institui a proibição de matrimônio em determinadas parentalidades. Segundo Freud, “tem-se de admitir que esses ‘selvagens’ (grifo nosso) são ainda mais sensíveis à questão do incesto do que nós. Então provavelmente mais sujeitos à tentação de cometê-lo e, por essa razão, necessitam de maior proteção.”
Para Lévi-Strauss “A psicanálise descobre um fenômeno universal não na repulsão em face das relações incestuosas, mas, ao contrário, na procura delas”. Ou seja, a proibição do incesto não ocorre pela repulsa, mas justamente pela desejabilidade das relações incestuosas. E mais, o antropólogo diz que em um sistema de parentesco não se encontra em laços objetivos de filiação ou consanguinidade, mas num sistema arbitrário de representações. Portanto, o sistema de parentesco é uma linguagem e não uma linguagem universal compartilhada. Isso significa que toda a existência está num sistema de significação. Em síntese, Lévi-Strauss afirma: “a proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consanguinidade ao fato cultural da aliança”.
Segundo Freud, em “Totem e Tabu”, e com base nos estudos de Frazer, nas sociedades de relações totêmicas, principalmente na Oceania, o horror ao incesto não basta. Faz-se necessário acrescentar uma série de “costumes” que o autor denominou de “evitações”. Nas Ilhas Hébridas de época, meninos e meninas que são irmãos passam por cerimônias no começo da puberdade e que se estendem até o final de suas vidas em que irmão e irmã se evitam. O menino, ao chegar em determinada idade, deixa sua família e passa a morar em uma casa compartilhada com demais meninos. Ao encontrar-se com sua irmã, por acaso, ao ar livre, eles devem fugir um do outro e sequer podem pronunciar o nome um do outro. O mesmo se passa entre o menino e sua mãe, que não podem mencionar um ao outro no pronome “você”, mas de forma cerimoniosa e no plural. O filho tampouco pode apanhar um prato de comida que sua mãe lhe traga, o prato deve primeiro ser colocado no chão para então ser apanhado pelo filho. A evitação entre irmãos também se passa em populações de Fiji, Nova Caledônia e da Península Gazelle.
Aqui vou usar a argumentação, e sutura, que a Caterina Koltai - socióloga e psicanalista - que aproxima Freud e Lévi-Strauss: a proibição do incesto deixa de ser um mero horror para se tornar uma função simbólica, entendida como lei de organização inconsciente da sociedade humana. Aqui reside o encontro de Freud e Lévi-Strauss, que a universalidade do incesto não está em seu conteúdo - do elementos de parentesco - mas na universalidade da função de organizar a sociedade enquanto apartada da sua condição de natureza, ou seja, puramente biologizante.
“Nessa ficção que é Totem e tabu, o contrato social freudiano tem, como vimos, acentos profundamente hobbesianos, não apenas porque nos fala da violência originária e do papel do crime cometido em conjunto na construção do vínculo social, mas também porque nos fala das leis da submissão e da origem da dominação que se exerce sobre os humanos com seu acordo e segundo as representações imaginárias de seu desejo, visto que faz da morte do pai originário o verdadeiro momento do contrato”(KOLTAI,C. 2018, p.23)
No exercício da clínica psicanalítica, o paciente é levado a produzir sentido aos tais derivados do reprimido, através da da formação de teia de associações livres, cuja tradução do analista irá reconstituir conscientemente o representante reprimido.
Que a agressividade seja intrínseca à humanidade, com base psíquica e biológica, isso é claro na bibliografia freudiana. Como disse Freud: “E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo.”
Nosso trabalho eterno enquanto sociedade é balizar a agressividade de nossas pulsões sexuais (leia-se aqui, introdução na cultura) para estarmos em um pacto social de convivência e coexistirmos com a nossa condição humana de sofrimento de largar nosso estado de natureza.
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Laura Bing
Cientista social formada na FFLCH-USP, com inclinação para a área de sociologia, e também psicanalista e membro do departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Antes de trabalhar com pesquisa, atuou por cerca de 10 anos na área cultural, em espaços como editoras, orquestras e museus. Além de pesquisadora da NOZ Inteligência, divide seu tempo com clínica particular, lugar onde encontrou o casamento entre a investigação e a inquietação e também em atendimentos à população no coletivo de Clínica aberta de psicanálise, que ocupa espaço na Casa do Povo. Já trabalhou com pesquisas na área de avaliação de políticas públicas e privadas, pesquisas na área ambiental e também em avaliação de impacto de empreendimentos em território de populações tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos. Se interessa por questões sociais e de tecer perguntas sobre o impacto que existe sobre o indivíduo.
Nosso desejo sexual pode variar ao longo da vida e isso não é um problema. Dependendo da nossa rotina, da nossa saúde física e mental, da nossa idade, da nossa sensação de bem-estar, dentre outros fatores, podemos estar com maior ou menor libido, sem necessariamente ter algo de errado. Mas quando essas alterações se tornam persistentes e prejudicam a vida da pessoa, algo deve ser feito para reequilíbrio do organismo.