Estar na Pele do Carlos: Página 11

Já faz algum tempo desde a última vez em que estive aqui, dividindo meus dilemas com vocês. Confesso que senti falta de ser ouvido em uma escala maior, porém, como todos aqui que lidam com questões de saúde mental, sendo o diagnóstico seu ou de alguma pessoa próxima da sua vida, também, tem altos e baixos. E quem me conhece de perto (como a Bel, progenitora do Instituto Bem do Estar),  sabe que meu companheiro foi diagnosticado com Síndrome de Burnout e tenho dedicado meu tempo à sua recuperação, fora claro o cotidiano de trabalho, exercícios e uma ou outra atividade pra não pirar. Graças a Deus ele está melhorando dia a dia, com o apoio de sua empresa que, vale ressaltar, não são todas que se colocam à disposição, embora seja um direito garantido por lei. Fica o bom exemplo. 

Mas, esta história é dele, e eu só citei para justificar minha ausência nos últimos meses. Venho aqui hoje abordar um outro assunto.

Vem chegando o mês do Orgulho LGBTQIAPN+.

Para quem chegou agora, já escrevi dois anos anteriores sobre o assunto, minhas percepções e mudanças ao decorrer da vida como homem cis gay. Tento também, como um marco para entender a progressão, analisar os dados de morte, da violência até aquele momento, desde meu último relato. Porém este ano, vamos falar sobre como ser um indivíduo LGBTQIAPN+ influencia na saúde da mente. Como não sou psicólogo e a proposta da coluna é falar sobre as minhas experiências, tirei algumas histórias da gaveta e vou tentar fazer uma autoanálise do que elas acarretaram na minha vida.

Quando eu tinha por volta de 19 anos, já tinha saído do ensino médio, passei por  uma espécie de ritual de passagem. Comecei a trabalhar na Paulista, a ter algumas experiências com pessoas do mesmo sexo e então, um turbilhão se formou na minha cabeça. Eu já não tinha dúvidas sobre minha sexualidade, mas ainda vivia escondido, preocupado com minha família e com meu núcleo de amigos da adolescência. Aquilo começou a me consumir tanto, que eu passei 4 noites inteiras sem dormir, e um belo dia eu amanheci com a sensação de que um lado do meu rosto estava dormente. Depois de mil exames e nenhum problema encontrado, o médico me receitou uma injeção de Diazepam, que me fez dormir por 24 horas ininterruptas. Logo eu viria a entender que, naquele momento, eu tive a minha primeira crise de ansiedade.

Obviamente, não sou o único a experienciar estes sentimentos na adolescência ou no início da vida adulta. O mundo mudou muito de lá pra cá, no entanto nós ainda vivemos em uma sociedade machista e que renega características claras em algumas crianças. Eu dava indícios até o início da puberdade, mas na adolescência eu consegui encobrir (quase) bem. Comecei a ter experiências com meninas, me tornei mais popular do que na infância. Porém, sempre com um certo comportamento errático. Comecei a fumar, vício que eu carrego até hoje. Bebia escondido, fugia da minha mãe, repeti o terceiro colegial por falta. Mas eu estourei mesmo, na época deste relato acima e foi tão traumático que carrego esta doença chamada ansiedade crônica até hoje, embora eu já tenha me resolvido nesta questão há muito tempo. Portanto, saibam que todos nós da comunidade LGBTQIAPN+ carregamos muitos traumas de nossa infância e juventude, e da pressão que sofremos por nos percebermos diferentes, porém tentarem nos enfiar na mesma forma de todo mundo.

Alguns anos depois, eu comecei a frequentar uma turma de amigos gays bem grande, e ali eu comecei a sentir uma pressão imensa (que dura até hoje) pra ser bem sucedido e ter o meu lugar ao sol. Todos vivíamos o mesmo sentimento de alguma maneira, porém pra um garoto recém saído de uma infância pobre e sem grandes expectativas acadêmicas, tinha peso 2. Esta pressão auto infligida vinha do fato de nunca me sentir realmente aceito por quem era. Nesta nova sociedade eu precisava ser visto, notado, interessante, já que no meu núcleo original, eu tinha que me esconder. Além disso, buscava desesperadamente realização profissional e financeira pois tinha na minha cabeça que só poderia me assumir se eu conseguisse me sustentar. Embora meus pais tenham descoberto quando eu ainda morava com eles, eu carregava em mim o medo do abandono. Não foi um processo rápido, mas eles nunca me deixaram, como eu via em muitas famílias. Este medo de ser abandonado e a pressão do auto sustento também são gatilhos que me assombram até hoje.

Mais tarde, lá para os meus 26 anos, eu tive uma experiência que marcou minha vida. Um dia na Loca, um clube que eu frequentei durante muitos anos da minha vida, eu conheci um rapaz que tinha certeza que tinha me dado “Boa Noite, Cinderela” num gole de bebida. Saímos do clube onde supostamente ele me daria uma carona, comecei a sentir uma tontura em cima da moto dele, desci correndo num farol e peguei um táxi para casa. Nunca mais nos falamos, porém analisando hoje, não acredito que aquilo realmente aconteceu. Na época, com muitos relatos deste tipo de caso, eu tinha certeza que sim. O resultado foi um ano em que eu vivi de caso pro trabalho e vice versa com medo de passar por aquilo de novo, e passava os meus dias de folga recluso, tomando Lexotan e dormindo o quão mais eu pudesse para esquecer aquele sentimento. Muito tempo depois, entendi que o meu medo era compreensível. Estamos em pleno 2023 acompanhando o caso do ator Jeff Machado que foi morto dentro da sua própria casa e enterrado dentro de um baú. Ou o caso do último Linha Direta, do assassino do Grindr, que marcava encontros e matava suas vítimas com um mata-leão. Aproveitando o ensejo, cito pelo terceiro ano seguido que o Brasil é o país que mais mata a população LGBTQIAPN+ no mundo. Talvez aquilo não tenha realmente acontecido comigo, mas aconteceu com muitos outros. Acontece ainda hoje.

Nossa realidade está longe de ser fácil. Vivo num lugar seguro, em um relacionamento monogâmico e com amigos que respeitam a minha existência como ela é. Mas carrego todas as experiências anteriores em traços muito claros, que eu aprendi a reconhecer e tentar corrigir, abstrair.

A minha geração já sofreu inúmeros danos desta visão ultrapassada, e a geração antes de nós sofreu o estigma da AIDS e a dizimação por esta doença que não mata mais, hoje está controlada, ao menos no nosso país. No entanto, nós nunca nos sentimos legitimamente seguros.

Aí eu te pergunto: como podemos mudar o cenário para o futuro? Com aceitação.

Parem de tentar consertar o que não tem conserto. Criem seus filhos cientes de que todos os indivíduos devem ser igualmente aceitos e receber o mesmo respeito. Mostrem para eles, desde cedo, que não precisam preencher nenhum requisito social para receber apoio, orientação, amor. Mostre que eles são o suficiente, mesmo que a sociedade ainda não o faça. A mudança começa dentro de casa. Ou melhor, dentro de cada um. 

***

Carlos Stefano 

Gestor comercial, decorador, escritor e aficionado por relações humanas e suas ramificações, ele divide suas experiências na coluna Estar na Pele aqui do Bem do Estar.

Carlos Stefano

Paulista de família mineiro-italiana, casado com o Neto há 7 anos, pai de uma border collie chamada Claire, gerente comercial, decorador, aspirante a escritor, violeiro de barzinho amador, desenhista amador, hiperativo e ansioso assumido.

Acredito piamente que, sempre que eu puder dizer ou fazer algo para mudar o dia, o ano, a vida de alguém, eu faço, sem pestanejar. Sou apaixonado por relações humanas e suas ramificações, portanto compartilhar minhas experiências une estas duas aptidões, em um único objetivo: o Bem do Estar. 

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