Qual a importância de se assumir LGBTQIAPN+ no ambiente de trabalho?
A resposta que logo me veio à mente foi: a importância de se assumir será determinada pela relevância que uma pessoa dá para sua subjetividade, sua inteireza, para a vivência de integração interna. Simples assim? Não. Sabemos que não.
Seria ingênuo não considerar a mão pesada do poder que determina o certo e o errado, ao longo da história da humanidade. Conhecemos o medo desde cedo. Vem a reboque da necessidade de sermos cuidados para sobreviver e aceitos como parte da família, da escola, do desejo de fazer brilhar os olhos que nos olham e revelam nosso próprio valor.
Lá na frente, a equação de cada um terá seus próprios elementos entre parêntesis, colchetes e chaves. A decisão de expressar autenticidade não é óbvia. Os medos estão ali, como inquilinos em nossa alma. Até que uma crise existencial se configura e nos pressiona por algum grau de compromisso com nossa saúde mental, física e espiritual.
Tenho mais perguntas que certezas sobre o que uma pessoa deve ou não deve fazer. Um dos benefícios da incerteza é ampliar a perspectiva de reflexão e questionamento. Olhar o outro por trás das marcas, adereços, tatuagens ou vestimentas, que tanto comunicam em contextos que optam pela surdez. Olhar para o outro e reconhecer parte dele em mim e de mim nele.
A mudança começa no indivíduo, na gota d 'água que reverbera na rede interdependente em que vivemos.... até que seja uma maré alta, resistente e consistente o bastante para se fazer ouvir. E então, incomodar, ser negada, confrontada, silenciada pela violência = mas por ser maré é certo de que cedo ou tarde irá retornar como as flores após um período de inverno.
Entretanto, não podemos ser tolos. Longos invernos matam. E todos perdemos com isso.
Um dia desses assisti, pela enésima vez, o filme O extraordinário. O diretor da escola, como um educador de verdade, que enfrenta a pressão de uma família arrogante, dando mal exemplo ao filho que fazia bullying com um colega de turma, ajuda o agressor a cair em si para entender o poder da própria maldade em ferir o outro. Ele diz “... mas talvez nós possamos mudar o nosso jeito de olhar para ele” ... . O menino se emociona, pede desculpas e o diretor o acolhe amorosamente, por perceber que seu ensinamento criou uma oportunidade de transformação. O menino quer permanecer na escola, mas os pais afirmam que ali ele não fica. Ali, onde as diferenças compõem o todo a ser integrado e não partes tratadas como exceção.
Como contribuição para a questão proposta pelo Instituto Bem do Estar, relacionada à campanha de junho, compartilho algumas palavras do pensador Edgar Morin em seu livro O Método 6: Ética e do tradutor do referido livro, apresentadas na capa e contracapa.
“O reino da incompreensão suscita os mal-entendidos, as falsas percepções do que é o outro, os erros em relação ao outro, tendo como consequências a hostilidade, o desprezo, o ódio.
Quase por toda parte, no nível da vida cotidiana, há, na esteira das incompreensões, milhares de assassinatos psíquicos, torrentes de baixeza, vilanias, calúnias. O desenvolvimento do individualismo certamente ampliou a possibilidade de análise pessoal, de reflexão pessoal, de decisão pessoal, e multiplicou as relações afetivas de amizade e de amor entre pessoas. Mas também a autojustificação e a self-deception quase sempre assumiram o controle da relação com o outro. A incompreensão produz círculos viciosos contagiosos: a incompreensão em relação ao outro suscita a incompreensão desse outro”.
“Foi lendo e relendo O Método que percebi algo simples e decisivo: compreender não é preciso. Mas é vital. Aventura incerta, complexa, sacudida por ondas gigantes, a compreensão é o grande desafio da travessia do homem no cotidiano. Ética, última pedra nesta construção sem fundamento último, sempre aberta ao recomeço, portanto inacabada, e uma peça essencial no todo, um grito contra o moralismo que ronda”.
Para quem se interessou, deixo a recomendação da leitura do trecho seguinte “Reconhecer a compreensão”, estimulada pela esperança, a última a sair da caixa de Pandora, de que a decência e a coragem para mudar se materializem em ações com poder de neutralizar os absurdos nutridos pela incompreensão.
***
Marcia Moura
Psicóloga, curiosa por diferentes saberes e perspectivas, tem dificuldade de responder sucintamente à pergunta “o que você faz?”. Interessada por pessoas, que são um mundo que se revela a cada encontro e transformam a quem se deixa afetar. Gosta de pensar junto, criar e realizar junto, de ser par, ser parte. Há muito se dedica a cultivar sementes, sempre com a convicção de que irão, cada uma a seu tempo e no tempo possível, viver e expressar sua singularidade.