Sexualidade e Saúde da Mente | Entrevista com o geriatra e professor Milton Crenite

Milton Crenite

Geriatra e professor do curso de medicina da Universidade de São Caetano do Sul – no qual atua como supervisor do internato de clínica médica –, Dr. Milton Crenitte é voluntário da ONG Eternamente SOU, voltada ao público LGBTQIAPN+ acima dos 50 anos, ponto focal de Sexualidade e Envelhecimento do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR). O especialista atua em consultório particular e como coordenador médico do Ambulatório de Sexualidade da Pessoa Idosa e, também, de um ambulatório para a população trans com mais de 40 anos, voltado ao atendimento da população trans e travesti, além de pessoas não binárias, ambos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).




De acordo com Dr. Crenitte, as preocupações da geriatria e da gerontologia sobre as temáticas de sexualidade e saúde mental necessitam ampliar os estudos e o debate para além da cis heteronormatividade, ou seja, compreender que existem outras identidades e sexualidades e que as pessoas dessa ampla população LGBTQIAPN+ também irão envelhecer. Ele acredita nessa necessidade e enfatiza que o principal desafio para o avanço desse debate é a educação de diversidade para estudantes da graduação e pós-graduação das áreas de saúde.

Uma luta anti-LGBTQIAPN+ fóbica, antirracista, anticapacitista, antietarista passa por visitar os preconceitos e passa também por capacitar profissionais para que saibam reconhecer e transformar esses preconceitos.

Além da instituição médica e de ensino, o médico destaca outra instituição em que os preconceitos aparecem: a família chamada “biológica”, na qual nascemos e somos criados, a partir das relações de sangue. “Eu já testemunhei pacientes dentro da população LGBTQIAPN+, acima de 40 anos, público do ambulatório de sexualidade, que romperam com a família biológica, mas que, ao mesmo tempo, encontraram suporte na família ‘escolhida’, amigos e rede de apoio”, conta.

O médico fala sobre a relevância do ambulatório de sexualidade da pessoa idosa do Hospital das Clínicas. Além da assistência às pessoas idosas que necessitem de algum atendimento específico de sexualidade, ele ressalta a importância do ambulatório para proporcionar aos médicos residentes em geriatria a experiência de um aprendizado de estratégias de comunicação com os idosos e também pensar nas possibilidades para o tratamento e o acolhimento de quem busque essa ajuda. “É um lugar de acolhimento para essa população e ensino, principalmente para os médicos que vão aprender a como abordar sobre sexualidade com seus pacientes idosos.

Ofertar esse espaço para os residentes é possibilitar estratégias de comunicação com os idosos e também pensar nas possibilidades para o tratamento e o acolhimento de quem busque essa ajuda”, pontua.

Durante o doutorado, Dr. Crenitte identificou barreiras de acesso à saúde por parte da população LGBTQIAPN+. Surgiu assim, em março de 2023, o ambulatório para pessoas trans com mais de 40 anos. A missão do ambulatório tem sido atender a uma ampla gama de pessoas, incluindo aquelas que passaram pela hormonização na juventude e as que estão em processo de descoberta da própria identidade de gênero. Portanto, o ambulatório abrange um público diversificado que está além das limitações da heterocisnormatividade.

O ambulatório estava em seus primeiros meses de vida quando esta entrevista foi realizada, mas ele já contava com pacientes; segundo Dr. Crenitte, a hormonização ou as alterações corporais não são necessárias e essenciais para buscar atendimento, até porque a identidade passa por decisões pessoais e individuais daqueles que desejam ou não fazerem esse tipo de intervenção; e isso não é decisivo para assumir a identidade de gênero. Ele ressalta: “A escuta e o acolhimento fazem parte da nossa principal demanda, pois esse grupo de pacientes busca ser escutado e respeitado, coisa que nem sempre acontece em outros espaços de atendimento”, afirma.

No consultório particular e privado, o Dr. Crenitte atende a população idosa – dentro e fora das identidades LGBTQIAPN+ –, com demandas geriátricas tais como perda de memória, perda de motricidade ou peso. Portanto, são pessoas que buscam informações e tratamentos sobre o envelhecimento. No entanto, o geriatra afirma ser necessário que parta dele o questionamento ao paciente sobre questões de sexualidade e saúde mental, pois isso não costuma aparecer de forma espontânea e natural, é algo invisibilizado. Para o médico, a inibição de pacientes em trazer esses temas ocorre por eles não pensarem que são assuntos importantes para serem discutidos com o médico, ou não se sentirem autorizados a perguntar. Em seus atendimentos, o geriatra afirma ser importante ter espaço para essas conversas de sexualidade e saúde mental, mas sempre com o cuidado da privacidade, por isso busca momentos com seus pacientes em que eles não estejam na companhia de familiares ou outros acompanhantes, e, mesmo a sós com o paciente, faz-se necessário pensar como trazer o assunto de forma confortável.

Para o Dr. Milton, sexualidade por si só já é um tabu, pois ela gera, em suas palavras, “pânico moral”, sendo conectada a uma degeneração moral e sempre no entorno de proibições. Existe, ainda, um duplo tabu com as pessoas idosas. “Quando a sexualidade é pensada em corpos envelhecidos, afinal, desde a época da mitologia grega existe o culto ao corpo jovem, belo e musculoso. O corpo envelhecido é associado à finitude e decrepitude, próximo à morte. O etarismo produz o discurso de que a pessoa idosa não tem direito ao próprio corpo e prazer”, reflete.

Outra ponta trazida à discussão é a ideia de que todo mundo precisa ter uma vida sexual e ainda por cima satisfatória. Para o geriatra, a indústria farmacêutica produz o discurso de que a vida sexual é possível para todo mundo, mas o geriatra pensa que “se uma pessoa ao longo da sua vida não teve um bom repertório de vivências sexuais, ela está no direito de não ter relações sexuais nesse momento da vida”, reflete. Por isso, na sua percepção, é importante que a reflexão não seja feita a partir do mercado — indústria farmacêutica —, pois ele certamente está comprometido em solucionar “problemas” que não são necessariamente demandados por pacientes idosos.

Sobre o diálogo entre saúde sexual e saúde mental, o geriatra afirma que ambas trabalham juntas. Uma depressão, exemplo citado, altera libido e expressão da sexualidade – e remédios voltados para a saúde mental comumente vão atingir essas expressões. E o contrário: uma questão de sexualidade e a expressão dela certamente vão atingir a saúde mental, como noções de autoestima e relações com o corpo. O manejo, segundo o médico, é pensar a abordagem com atenção para a doença, mas, sobretudo, para o histórico do indivíduo que está manifestando esse incômodo. Uma pessoa com disfunção erétil e com depressão seria medicada para a resolução dessas demandas, mas, em um atendimento voltado para ela, deve-se buscar a escuta do contexto do aparecimento dessas questões. Isso significa que, sim, pode haver a medicalização, mas também a escuta do cenário biopsicossocial do paciente, inclusive com a possibilidade de envolver um tratamento multidisciplinar como atividade física, terapia etc.

Por fim, o médico nos traz uma reflexão. “Eu não gosto de reduzir a busca do geriatra apenas por pessoas acima de 60 anos, pois a gente não vai dormir com 59 anos e acorda um idoso de 60. O envelhecimento é um processo que começa quando a gente nasce, mas claro que cada um com uma especialidade de cuidado para determinada idade. Mas qualquer pessoa com interesse sobre o próprio envelhecimento pode se preocupar e ocupar de como fará esse processo de chegar aos 60 anos com saúde, principalmente da parte mental e sexual”, finaliza.


Este conteúdo faz parte do “capítulo 8 - Preconceito e tabus” do livro “Sexualidade e Saúde da Mente, disponível gratuitamente em www.nozinteligencia.com.br/sexualidadeesaudedamente


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