Estar na Pele da Robertta: Página 01
Sobrevivente, autodidata, humana.
Sobrevivi a uma família narcisista, a uma escola narcisista, a empresas narcisistas e a esta sociedade narcisista que tenta a todo custo transformar o ser humano no produto que convém a eles. Digo narcisistas sem cunho acadêmico porque não tenho competência técnica para emitir diagnóstico. Baseio minha opinião na experiência de 64 anos VIVENDO intensamente a vida que Deus me deu, estudando voluntariamente sobre comportamento, sobrevivi a todas as formas de demérito, desqualificação, invalidação, humilhação, rejeição e abandono que é submetido um ser que ousa ter um comportamento/ideia diferente em meio a massa de manobra que se sujeita aos desmandos daqueles que de alguma forma detém algum poder.
Difícil falar desse tema sem falar um pouco sobre minha história.
Não falo apenas de SER mulher trans, me refiro a todas as pessoas que na sua essência, diferem da maioria que cumprem papéis acoplados a máscaras para se manter “nesse jogo” de ganhar ou perder que os humanos sobre a Terra interpretam, muitos com maestria, a maestria de enganar, iludir para não sofrerem os adjetivos que usei no início, e vivem infelizes dentro de si mesmas. Haja vista a repercussão crescente das redes sociais, enredando pessoas que tem a necessidade de “parecer” para poder estar nesse “jogo”. Que pena.
Digo pena, na minha humilde opinião, pois no meu círculo de amizades/clientes, é nítida a discrepância do que é exposto e da realidade que vivem. Como cabeleireira/maquiladora há 43 anos, posso dizer que aquelas/es que se dispõem a falar na intimidade do meu atendimento, expressam sempre profundas dores/frustrações, consequência desse eterno vestir máscaras para não perder o status, seja ele qual for, e poder dizer: “eu tenho, eu vivo, eu sou ISSO ou AQUILO”.
Quero deixar claro que isto não é uma crítica, apenas uma reflexão que me trouxe conclusões as quais baseio minha vida desde que me reconheço como “Pessoa” vivendo neste planeta.
Dou absoluto direito de cada um ser o que escolher para si.
Observando o comportamento humano pude criar para mim uma maneira de viver própria, acredito, sendo que encontrei tantas pessoas contrárias que se tornaram inimigas por não concordar com minha visão da realidade. Quando digo realidade me refiro aquela que consegui enxergar depois de muita observação e experiências pela vida. Claro que tentei me encaixar muitas vezes, até os 21 anos, sem sucesso efetivo no meu interior, foi quando, aproveitando um jantar em casa, com a família reunida, num 7 de setembro, comuniquei que: “já que eu não estou conseguindo agradar nem vocês e nem a mim, de hoje em diante vou viver como acho correto para o meu ser, quem não gostar por favor vá pra pqp...”. Houve silêncio, me levantei e saí pela segunda vez de casa. (aos 18 anos pela primeira vez).
Enfim, depois dessa “Torre” destruída, agora eu precisava me reconstruir enquanto pessoa e enquanto mulher.
Dá para imaginar como foi isso no ano de 1978, em São Paulo, numa sociedade recheada de preconceitos contra TUDO que fugisse dos padrões pré-estabelecidos, que considerava o mundo gay à margem da sociedade, considerados marginais, putas, travestis e drogados. Salvo os artistas, que eram convidados pela sociedade para serem chacota pública, ou usados nos bastidores pelos perversos para exercerem suas taras clandestinamente.
Com nojo de tudo isso, nunca me encaixei em nenhuma “categorização” social ou gueto que oferecesse conforto de estar em um ambiente, mesmo que apenas momentaneamente, porque até no meio gay encontrei discriminação.
Sempre fui criticada por buscar cirurgia, “pára viado de querer ser mulher” por aqueles que frequentavam a noite comigo.
Frequentei a noite por 10 anos assiduamente (até o AVC de minha mãe) e mais 10 anos esporadicamente para poder ter um ambiente onde pudesse dançar e me vestir como me agradasse, mas o preço dessa liberdade era alto, saía de um ambiente hostil para encontrar conforto com meus pares, mas isso não acontecia também. Nesses 20 anos que frequentei o mundo gay não consegui trazer um amigo sequer que comungasse com minhas ideias.
Mas a vida dá voltas e aos 24 anos minha mãe teve um AVC, eu escolhi não expô-la a uma pessoa estranha que cuidasse da sua intimidade e nem estivesse na intimidade da nossa casa. Por um ano e meio me dediquei a essa tarefa, não porque me sentisse devedora do que havia feito por mim, (fui eleita a ovelha negra desde que nasci) mas sim pelo que vi realizando para todos a sua volta desde que vim ao mundo.
Como não tive conivência da família, esse trabalho se estendeu até sua morte em 04/2006. Não me arrependo e nem quero mérito, fiz o que era necessário fazer, apenas como retribuição da vida por tudo que ela foi para todos.
Bem, profissionalmente exerci muitas funções, até cargo de chefia numa empresa de engenharia de solo, quando ingressei no serviço público aos 18 anos. O que me garantiu certa estabilidade porque minha chefe era um anjo na terra e permitia que eu fosse apenas eu, claro dentro de uma discrição que é minha. A boa educação que meus avós me deram me ensinou a “uma vez em Roma aja como os Romanos”, isso me permitia entrar e sair dos lugares sempre de cabeça erguida e deixando portas abertas.
Até os 21 anos quando resolvi manifestar meu dom inato com beleza e minha sexualidade latente exercidos desde adolescente, com restrições, mas absolutamente autodidata, me assumi cabeleireira para minha satisfação, amo o que faço, faço com amor. Essa sou Eu, uma mulher que desabrochou, saiu do casulo para bater asas e ser livre.
Felizmente, nesta vida fui beneficiada com um fenótipo agradável que me abriu portas, mesmo com certa resistência, e todas as vezes que saí de casa, foi escolha minha, ao contrário de muitas pessoas vítimas de famílias incompreensíveis, que muito cedo jogam seus jovens na rua a própria sorte, quando se veem obrigados a “sobreviver” de acordo com as circunstâncias.
Por isso não há condenação para nada que alguém nessa situação tenha que fazer para se manter vivo/a. Cada um usa os recursos disponíveis que se apresentam, pois sempre há uma alma que se compadece da dor do outro. A sociedade narcisista também cria Sobreviventes que se reconhecem nas suas dores e estendem a mão para quem precisa.
Aqui, falo também das meninas que engravidam, das mulheres e homens abusados por seus familiares, dos que são eleitos ovelhas negras, e essa referência não é de raça, apesar de incluir os negros, os índios, os brancos, os pardos, os muçulmanos, os refugiados, os pobres, os obesos, os pdc, e toda sorte de vítimas do preconceito e da ignorância humana (se pode chamar essa atitude de HUMANA). Enfim...de todos os que não se encaixam no perfil de “normal” que a sociedade criou.
Então o que falar sobre: Ser mulher Trans?
Não posso desassociar uma mulher negra, com filho, sem formação, de uma mulher trans, negra, com filho, sem formação, nem uma mulher cis branca com filho, sem formação, nem uma mulher obesa, com filho, sem formação, nem uma mulher ucraniana, com filho, sem formação, nem de uma chinesa, com filho, sem formação, nem de uma mulher lésbica, com filho, sem formação, nem de um gay, com filho, sem formação.
Independentemente de ter filhos ou não, em qualquer dessas circunstâncias, estamos falando de SERES HUMANOS.
Minha visão de sociedade é absolutamente UNIVERSALISTA, somos todos iguais salvo nossas individualidades, o que nos coloca na máxima: “Somos todos iguais perante DEUS”.
Tirando a conotação religiosa, enquanto humanidade, nada nos diferencia além do coração. É o que nos torna narcisistas perversos, psicopatas ou sobreviventes compassivos neste mundo de dualidades.
O bem e o mal, o dia e a noite, masculino e feminino, nos formam enquanto PESSOAS, e ninguém está isento de viver qualquer um dos lados.
Então, nos encontramos num lugar comum, “ser mulher”.
Conta uma história Tibetana, que no início da civilização humana, a mulher era endeusada na Terra pelos homens pelo fato de gerar outro ser humano, e tudo era paz e harmonia, até que o homem descobriu que quem plantava a semente era ele...a partir de então, tomou o poder para si, e transformou o mundo no que conhecemos através da história, guerras, lutas de poder, disputas territoriais, disseminação de seres humanos, o caos.
Não sou feminista nem machista, prezo pela igualdade enquanto Seres Humanos. A força masculina é necessária, a doçura feminina é imprescindível.
Mas, não posso terminar esta conversa sem falar da minha gratidão a Deus, por ter me dado a oportunidade de ser mulher nesta vida.
Se tenho lembranças boas nesta minha jornada, uma delas é poder ter exercido a mulher que existe em mim em toda sua plenitude.
Não foi fácil encontrar um lugar confortável nesta vida, mas o melhor que pude ter é ser mulher em mim, nada, em nenhum momento, em nenhuma circunstância, nem ninguém pode tirar isso de mim. Perdi muitas coisas, me foram tiradas muitas oportunidades, fui desqualificada, humilhada, desmerecida, enganada, vilipendiada, mas nada nem ninguém me tirou o direito de ser quem sou dentro de mim, na minha própria natureza de Ser Mulher.
Por isso nesta data tão significativa tenho que deixar meus parabéns a TODAS as mulheres, que independente de qualquer circunstância, não perderam o feminino em si mesmas.
Espero que parte da minha história, contada aqui tão singelamente, possa inspirar outras mulheres a continuar no propósito de APENAS SER MULHER.
PARABÉNS MULHERES DE TODO O MUNDO.
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Robertta Francolin
Esteve no meio corporativo e serviço público dos 14 aos 21 anos.
Há 43 anos como profissional da beleza, sem intenção de parar de criar, sempre aberta para o novo.
Autodidata, sensitiva, sobrevivente.
Nosso desejo sexual pode variar ao longo da vida e isso não é um problema. Dependendo da nossa rotina, da nossa saúde física e mental, da nossa idade, da nossa sensação de bem-estar, dentre outros fatores, podemos estar com maior ou menor libido, sem necessariamente ter algo de errado. Mas quando essas alterações se tornam persistentes e prejudicam a vida da pessoa, algo deve ser feito para reequilíbrio do organismo.