Estar na Pele da Letícia: Página 10

Janeiro branco e a importância do autocuidado

Simone de Beauvoir, lá pros seus vinte e poucos anos, conheceu Sartre. A conexão dos dois foi tão intensa e eles eram uma dupla tão feliz que ela escreveu “não me restava nada por almejar a não ser que aquele estado de triunfante felicidade continuasse eternamente”.

Mais de um ano vivendo quase que completamente voltada a esse sujeito, ela começou a notar que tinha perdido um pouco da sua identidade, em razão de se encontrar tão intelectual e emocionalmente subordinada a alguém que não era ela. Em um dos registros sobre esse fato diz “sem sombra de dúvida eu estava abdicando de mim mesma”.

Pode ser que a conexão com essa curiosidade da vida de Beauvoir não remeta o leitor imediatamente ao campo do autocuidado, mas foi o que aconteceu comigo. Veja, que profundo o reconhecimento do abrir mão de si.

Ao se encarar diante desse cenário de privação do seu ‘eu’, a saída encontrada foi aceitar um cargo de um ano como professora em Marselha, na França. O distanciamento físico de Sartre simbolizava uma escolha crucial: a de se resgatar.

Nesse período de um ano, ela se propôs simplesmente a fazer caminhadas. Mas, não tão simples quanto pode parecer, não se tratava de qualquer caminhada - aquela volta no quarteirão para levar os cachorros para passear ou uma trilha intensa em um domingo de sol.

Simone de Beauvoir caminhava por cerca de nove ou dez horas, descendo penhascos e escalando morros. Enfrentando o sol escaldante e a chuva inclemente. Frequentemente até se colocando em perigos um tanto quanto exagerados, que levaram os seus amigos mais próximos a aconselharem que ela parasse com tais aventuras.

Contrariando cada um deles, ela persistiu e afirmou “esses momentos, com todo o seu calor, ternura e fúria, pertencem a mim e a ninguém mais”.

Das muitas passagens da vida dessa intelectual tão relevante política e filosoficamente, essa tem um lugar especial no meu coração - e com a qual pretendo aprender muito ainda.

Não, Simone que me perdoe mas as minhas caminhadas não vão ultrapassar mais do que um par de horas, com a segurança de uma barraquinha de água de coco no meio desse percurso. O que enxergo é o autocuidado na escolha por esse ano de reconexão vivenciado tão intensamente.

Ela poderia muito bem continuar sendo arrastada pela maré. Se manter em Paris, em seu lugar de conforto, ao lado do seu amado, seus amigos e tudo mais que já conhecia.

Poderia, mas optou por seguir o chamado que a dizia para se escolher. Não é sobre o ato de caminhar em si, mas sobre distanciar do que nos desconecta de nós mesmos, ainda que provisoriamente.

O que Simone fez, alguns poderiam chamar de fuga. Eu escolho chamar de redescoberta do eu: a busca pelo espaço que nos permite voltar o olhar para dentro.

E, claro, inegável o cultivo do autocuidado através do cultivo de quem se é. Afinal, é apenas entendendo quem nós somos que poderemos suprir todas as nossas outras necessidades. Cuidar de todas as nossas outras partes que necessitam de cuidado.

Que em 2024 nós também possamos perseguir nossa própria individualidade, ainda que de maneiras menos radicais.

***

Letícia Cais

Letícia é estudante de Direito e autora de “Gira, o livro”. Canceriana, sente tudo com intensidade. Começou a publicar seus textos na internet em 2016 e nunca mais parou.

Apaixonada pela escrita e por tudo que ela proporciona, encontrou nas palavras um refúgio para suas reflexões. 

Letícia Cais

Letícia é estudante de Direito e autora de “Gira, o livro”. Canceriana, sente tudo com intensidade. Começou a publicar seus textos na internet em 2016 e nunca mais parou.

Apaixonada pela escrita e por tudo que ela proporciona, encontrou nas palavras um refúgio para suas reflexões. 

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