LGBTQIAPN+ pelas lentes do AMOR, RESPEITAR É A LEI

Foto: Alexander Grey / Unsplash

Um dia, quando eu estava grávida, recebi o diagnóstico de que meu bebê não teria condições “normais” e me foi sugerido, como um gesto de carinho do médico que me acompanhava, que eu interrompesse a gestação. Eu fiquei muito abalada e não entendia a razão de duvidarem da minha capacidade de amar e cuidar de alguém “diferente”. Depois de algumas conversas amorosas me encorajei a responder que iria até o fim e enfrentaria os desafios que os médicos previam para nós, que no final não se confirmaram, foi um erro de imagem.

Um erro de imagem é quando o que se vê não determina o que se é... então, é preciso olhar de novo, com paciência e mais luz. 

“Eu te vejo e ao te ver facilito que você seja” – Marcelle Xavier

Nos últimos anos, tenho me dedicado a estudar o amor e tenho aprendido muito sobre a potência do amar, que transborda as linhas do romantismo e amplifica o sentimento no mundo e para o mundo. Pelo importante princípio de permitir que o outro exista, legitimamente, eu resolvi que para escrever sobre a saúde da mente dos lgbtqiapn+ eu não partiria das minhas suposições; ainda que como especialista em comunicação eu tenha hipóteses sobre o que pode acontecer, preferi perguntar diretamente como se sentem e o que pensam as pessoas que vivem a realidade de suas identidades de gêneros no Brasil. 

Os relatos são fortes e doloridos de se ouvir, no entanto, são preciosos para quem quer aprender a contribuir para as mudanças necessárias e urgentes da mentalidade e do comportamento social em relação à sexualidade. 

A sexualidade é uma expressão humana e como tal é diversa e plural.

Para a maioria das pessoas que conversei, as famílias são o lugar de maior potência do sofrimento, porque abortam tardiamente os filhos e filhas que não têm as condições que pais e mães julgam ser “normal”, “aceitável”, “convencional”. Em geral, as mesmas famílias que por princípios religiosos não aceitam o aborto gestacional como escolha – é uma reflexão, sem levantar nenhuma bandeira, mas pensando na vida e na responsabilidade pela vida e no amor à vida: em que ponto uma pessoa, filho ou filha, deixa de ter valor e respeito por ser diferente da expectativa dos pais? A capacidade de amar e cuidar diminui diante da revelação da sexualidade do filho ou filha?

Localizo aqui a violência de negar uma existência. A violência de ignorar os desejos do outro. A violência de determinar que o valor e o amor estejam condicionados ao ser idealizado e não ao ser legítimo.

Em alguns momentos desse percurso curto, escutando essas histórias, eu chorei. Depois, respirei fundo e retomei a atenção.

Uma das entrevistadas me fez uma pergunta: “Quando você pensa em alguém da comunidade Lgbtqiapn+, você pensa em quem?” Antes que eu pudesse formular uma resposta ela me disse: “Com certeza não em seu filho, filha, pai ou mãe. Não porque eles não sejam ou não se identifiquem como lgbts, mas porque ninguém os traz para perto, para o convívio factível. Esse é o maior dos nossos preconceitos.”

Eu fiquei muda.

Entendi que não é incomum que a saúde da mente de Lgbtqiapn+ seja exposta a este contexto que os faz sentir vergonha, inadequação, culpa e completo desamparo para lidar com as dúvidas que se apresentam. 

Nos espaços sociais e educacionais não se fala sobre sexualidade e, quando se fala, perpassam-se vieses, como uma espécie de tintura ao tema que impede a luz natural sobre ele. 

O amor parental incerto destrói as garantias de vida e implica em um medo gigantesco de tudo e de todos. Não há em quem confiar, não há abrigo, nem proteção. O papel da família é soterrado pelo preconceito. 

É dado um nó que enlaça autonomia e abandono, fazendo que tenham o mesmo significado.

A tristeza brinda essa descoberta e para alguns dá a chance de construírem redes de apoio que são uma nova família, eleita pela aceitação, pelo conforto e pela disposição em partilhar a vida sem julgamentos. O que não deixa de ser uma bolha criada, ainda vulnerável na sociedade contemporânea, especialmente nos ambientes profissionais. 

Mas, nem todos têm essa chance. Alguns convivem com o medo da traição e do abandono e se apegam à ideia de que para terem lugar no mundo precisam de independência financeira. 

Uma solução de vida prática que não há como ser descartada ou criticada. Entretanto, também é um estágio profundo de solidão, em que o temor da entrega reprime a expressão genuína e constrói carcaças duras que os mantém escondidos, mesmo quando decidem assumirem-se gays, lésbicas, bis, trans... Ou seja, é bem mais complexo do que parece.

Falar é libertar-se?

Eu acreditava que falar ajudasse a aliviar a carga emocional. Algumas vezes, no decorrer da minha formação e carreira, ouvi isto das pessoas. Mas, eu aprendi nesses dias de pesquisa, que isto não é uma regra: nem sempre falar é a solução. 

Um entrevistado relatou que falar para a família foi seu pesadelo. A partir do momento que verbalizou sua homossexualidade viu desmoronar sua relação familiar. Ver a mãe deprimida o fez sentir-se culpado e com a sensação de que a felicidade dela cabia a ele, bastava que deixasse de ser quem era, bastava namorar uma mulher e tudo se resolveria. Mas, não era uma questão simples, pelo contrário, e na impossibilidade de mudar-se, tentou tirar a própria vida e carrega em seu corpo as “sequelas da morte frustrada” (palavras dele).

Então, ele resume: “que saúde mental eu tenho? Luto por mim”.

Eu emudeci, mais uma vez.

Conversei também com um jovem trans, amorosamente acolhido pela família e pelos amigos, que destaca ser exceção entre tantos que convivem com a não aceitação das pessoas próximas. 

Apesar de ter todo este apoio, revela-se “exausto” pela luta diária de existir como quem é, sendo preciso (re)validar e justificar sua sexualidade a todo momento, tamanha a burocracia imposta, que propositalmente constrange e agride, o desanimando para ações corriqueiras como ir ao cinema com a carteirinha de estudante, viajar, matricular-se numa academia. 

A imagem que me veio foi a ciranda dos ratinhos de gaiola que giram e não saem do lugar. Looping eterno: a esperança dos recomeços e a frustração da mesmice marcam o retrato do cansaço.

Ele também falou sobre o sentimento de impotência diante das injustiças e a tarefa árdua de querer modificar o mundo. A qualquer momento alguém pode se desagradar com a presença de um transgênero e isto é o suficiente para se instalar a insegurança física e mental. 

A consciência do peso de existir é cruel e traz à baila o discurso bonito das garantias humanas fundamentais que na prática se dissipam à vontade de gente que dita a liberdade e impõe regras deformadoras. A vida de quem precisa de leveza não flui e ninguém se responsabiliza por isto.

A sociedade se comove diante de fatos consumados – agressão, morte, cenas explícitas de preconceito – difícil é se antecipar aos fatos e dar lugar para que as pessoas sejam quem são, da forma como desejam. Por isso, as histórias se repetem, os índices de violência crescem, as vítimas têm cada vez mais medo, menos oportunidades, mais comprometimento da saúde emocional.

Mas, sejamos coerentes, o adoecimento das pessoas é reflexo da sociedade doente, contaminada por dogmas e convenções corrosivos, que distorcem as palavras e criam normas absolutamente nocivas e excludentes que começam a valer a partir do nascimento de uma criança. 

“Nossos destinos foram traçados na maternidade” Cazuza

A necessidade de olharmos para os planos dos pais para os filhos, com base nas convenções sociais, não como uma sentença que os reduz aos seus próprios desejos e expectativas e sim como um guia de acompanhamento, sujeito às mudanças inerentes à vida e aos relacionamentos, afinal, somos feitos de impermanências.

Precisamos nos levantar diante de mentes fragilizadas pela ideia de controle e pela busca por corresponder/agradar que impede o entendimento sobre quem se é e quais os limites separam um ser do outro. 

Nas conversas que tive, senti que olhar-se individualmente foi o primeiro passo dessas pessoas para o autorreconhecimento e em seguida, encontrar pares, apoio, redes, famílias para nutrir a interdependência e fortalecer a segurança emocional.

“Eu sou porque tu és. Eu sou porque nós somos.” Ubuntu

Não há neste texto nenhuma intenção de ser conclusivo. O que eu gostaria é que à medida que se toma contato com as palavras ditas, o leitor silencie suas convicções e escute, empaticamente, as pessoas por trás das letras – LGBTQIAPN+ (eu cogitei não falar sobre a orientação sexual categorizada, porém, os depoimentos trazem impressões particulares que merecem ser descritas).

Reitero meu profundo respeito às pessoas que a mim confiaram suas experiências, eu aprecio as suas existências corajosas e desejo imensamente que compartilhemos um mundo com muito menos erros de imagem, em que o AMOR seja a lente pela qual enxergamos o outro e a nós também.


***

Daniela Cais

Mestre em Fonoaudiologia – Designer de Conexões, Consultora de Comunicação Interpessoal, Palestrante e Mentora.

Instituto Bem do Estar

Queremos gerar conhecimento aplicável sobre a saúde da mente


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