“São fáceis porque são pobres”

Engin Akyurt / Pexels

A insistência do discurso social em designar um modus operandi de como a mulher deve ser e se comportar existe desde sempre e em diversas culturas. As inúmeras tentativas de colocá-la na posição de objeto escancaram, por um lado, os corpos como moeda de troca, alvo de violência e assassinatos. De outro, esse discurso vela e tampona o feminino particular de cada uma.  

A discussão sobre a mulher não é mais designada por uma questão biológica, já que não estamos falando de macho e fêmea. A escolha de gênero faz desaparecer essa vertente do tema e, assumir-se como mulher, deixa de ser baseada no órgão sexual.

 Mas então, o que é ser mulher? 
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Esta é uma pergunta ontológica. Tal definição é feita pela diferença, pelo negativo e não por sua suposta identidade. No dicionário, homem é definido como ser humano em geral, mamífero bípede, dotado de inteligência e linguagem. Mulher é o substantivo feminino da espécie humana. Se não é mais a biologia que a determina, não há um atributo exclusivo, uma essência universal. A identificação daquela que se nomeia “mulher” não se completa em um conjunto, em um complemento, pois o feminino experimenta no corpo, segundo a psicanálise, algo sem forma, sem palavras e sem razão. 

Uma definição geral e universal não contempla o que é a mulher, mas é possível dizer sobre cada uma delas, uma a uma. 
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O discurso patriarcal, enquanto insiste em estabelecer semblantes que determinem o que é ser mulher, também exclui sua essência. Negar a mulher, e negar a ela, parece mais fácil do que escutar sobre aquilo que escapa a ordem do saber do dicionário ou da biologia.

Sem inscrever a mulher em categorias normativas determinadas por um ideal social, a feminilidade pode ser o caminho a nos dar pistas sobre o enigma do que é ser mulher, no singular. Ser mãe, por exemplo, não diz o que é ser mulher. Em alguns casos isso pode se cruzar, mas em outros, não. 

Ser mulher é uma exceção à normatização. 
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É a linguagem que faz o ser existir. Inclusive aquilo que não existe tem a chance de existir quando é falado. Nesse sentido, coragem pode ser entendida como dar lugar ao que não se sabe. Escutar como cada ser humano que se identifica como mulher, constrói sua própria feminilidade, onde e como está ancorada sua existência e sua relação com o outro. Mas socialmente, parece ser mais simples negar, diminuir, violentar, objetificar ou matá-la. A cada dez minutos uma mulher é estuprada no Brasil.

Não há dualidade heteronormativa que dê conta da determinação de gênero. Primeiro, porque mesmo que haja uma identificação ao outro e um reconhecimento de si no outro, há algo da feminilidade que não diz respeito a nada pré-estabelecido. Segundo porque, mesmo que a mulher esteja inserida na mesma lógica de todos os seres humanos, ela está lá parcialmente. Por isso não é complementar a norma, mas suplementar a ela. Como diz Lacan, não se cruzam e não se completam. Disso só se sabe quando se experiencia. Apenas é. 

Aquilo que não se sabe, fascina, causa desejo e curiosidade. Mas o desconhecido também causa repulsa, violência, nojo e ódio. Tomada como valor menor, a mulher é colocada na lógica universal. Tomada como livre e dona de si, em excesso. O problema é que não se trata de uma medida de valor, mas de uma borda. O limite estabelece um dentro e fora, uma totalidade para ser ou não ser. A borda parte do que não se é, para então bordear o que é. Para muitos pode ser insuportável aquilo que não entra na lógica do equilíbrio, da unidade e da uniformização. Em contrapartida, a mulher pode saber que aquilo que o discurso social promete é apenas semblante de ser.

A misoginia ainda hoje é aceita na tentativa de destruir e destituir a mulher. Muitos acreditam que caso o desejo dela seja mortificado, nada da feminilidade aparecerá. O estranhamento de si, e o horror daquilo que não se sabe nomear, toma forma no corpo da mulher, como alvo. Enquanto nela falta, é oco, vazio e objeto, o homem é aquele que sabe de si e é prudente. Para alguns deles, a mulher é apenas duas coisas: mamãe, com quem se fala, ou objeto sexual. 

Alguns homens não suportam a feminilidade. E por isso, nunca saberão e nem terão pistas do que é uma mulher.
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Mirmila Musse

Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização.

Mirmila Musse

Mestre em Psicanálise pela Université Paris VIII (2011), na França. Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Associada ao Centro de Investigação da Ansiedade (Clin-a). Atua em consultório particular desde 2012. Atualmente coordena um Ateliê de Leitura em psicanálise lacaniana no Clin-a e é professora de psicologia na Universidade Paulista (Unip). Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Atua com supervisão clinica e institucional. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização. A singularidade existencial e os destinos do sofrimento psíquico individual e social.


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