Sexualidade e a modernidade: moral e sofrimento psíquico por Silvia Cavalcanti

Janeiro, o mês branco. Mês da saúde mental. E a convite do Instituto Bem do Estar, venho novamente contribuir com a página, agora para escrever sobre sexualidade e psiquismo.

Do convite até o momento da escrita (quando reli a proposta do tema) tinha ficado com a lembrança de que o tema seria a sexualidade feminina e saúde mental.

Não à toa. Tema sempre presente na trama social, seja pela repressão, seja pela reivindicação de direitos. Um tanto influenciada por conversas com amigas e colegas psicanalistas acerca do tema, em especial sobre a leitura de dois livros: “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, Elisabeth Badinter (1980) e “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, Silvia Federici (2004). 

Filósofas de formação, ambas fazem uma análise sócio histórica do papel da mulher ao longo das transformações sociais causadas pelas novas organizações familiares, do trabalho e modos de produção, observadas a partir do século XVIII.  Badinter traz uma análise da constituição da família nuclear e com isso a sexualidade feminina voltada para a maternidade. Federici tem como objeto de pesquisa a história das mulheres no período de transição do feudalismo para o capitalismo, no que diz respeito ao uso de seus corpos no entrelaçamento entre o plano político, econômico e social, incluindo aí também a maternidade e sua função na organização da sociedade.

Não vou me aprofundar no tema da maternidade enquanto exercício reconhecido socialmente da sexualidade feminina, porém não podemos deixar de considerá-lo como um fator que ainda atravessa o discurso sobre o prazer da mulher e que tem impacto em sua saúde mental, na medida em que reduz o prazer sexual à função reprodutiva, eliminando a subjetividade de cada uma no que diz respeito à forma de viver a sexualidade, estabelecendo, inclusive, um padrão heteronormativo no que diz respeito à constituição de uma família e à maternidade.

No livro “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, a autora percorre o período de transição do feudalismo para o Iluminismo, no qual a família passa por uma transformação em sua constituição devido às altas taxas de mortalidade infantil, derivada das condições insalubres em que as amas de leite criavam os filhos de outras mulheres, cujo cuidado lhes era destinado. Nessa transformação, a mulher que outorgava a criação de seus filhos a uma outra, e assim seguia participando da vida social, passa a exercer papel central no cuidado da casa e da família.

Retomo o texto de Freud de 1908, Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, para ilustrar o efeito da moral sobre a sexualidade e suas consequências sobre o psiquismo.  Nele, Freud questiona as considerações dos médicos acerca da relação entre civilização e doença nervosa, colocando em xeque a atribuição dessa a fatores hereditários e sócio-econômicos da época. Anterior ao “Mal-estar na civilização”, obra na qual traça a relação dos indivíduos com a cultura e as renúncias necessárias das pulsões, porém não sem custo em termos psíquicos, o texto traz a análise freudiana de que a moral faz exigências que provoca insatisfação a todos em função da repressão das pulsões sexuais.  Nesse sentido, lança luz ao casamento monogâmico imposto pela moralidade sexual vigente na modernidade, que estabelece uma dupla moral; sendo permissivo quanto ao comportamento sexual dos homens e extremamente vigilante ao comportamento das mulheres, com vistas ao modelo de família e as exigências que se constituíram em relação ao papel da mulher no tecido social a partir do século XVIII. Assumindo que finalidade da pulsão sexual era, primariamente, o prazer, e apenas a posteriori a reprodução poderia vir a se organizar, Freud afirma, nesse texto de 1908, que era impossível homogeneizar a conduta sexual dos indivíduos, incluindo os homossexuais em sua análise, de modo que parte do sofrimento ao qual estavam submetidos se originaria não na condição da hereditariedade (como afirmava o discurso médico), mas na inclinação de corresponder a um ideal normativo.

Monika Kozub/ Unsplash

O que contribuiu para a mudança que observamos entre o início do século XX e os dias de hoje?

De lá para cá observamos o avanço de movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento e legitimação das diversas formas de expressão da sexualidade e modelos de família.

Através do feminismo, as mulheres reivindicam o poder, a posse de seu corpo e o pleno exercício de sua sexualidade. O mesmo vale em relação ao movimento LGBTQIAP+, constituído por indivíduos que tomaram consciência da sua condição e lutam pelo direito à diferença, o que vem criando um grande impacto na forma de se compreender a sexualidade.

Se é verdade que não há plenitude no que diz respeito ao desejo, uma vez que ele é movido pela falta e que desde nossas relações primordiais fizemos sacrifícios em nome do amor das figuras parentais, que possamos viver a sexualidade da forma mais livre possível, ou seja, de forma menos neurótica. 

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Silvia Cavalcanti - Colunista convidada

Psicóloga e psicanalista, com atuação em consultório particular e, atualmente, também trabalha como psicóloga hospitalar. Com experiência em políticas públicas da Saúde e Assistência Social, interessa-se pela multiplicidade das formas de viver.

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