Estar na Pele do Carlos: Página 03

Nosso orgulho é pela resistência

Já faz algum tempo que tenho tentado digerir um post meu de 10 anos atrás sobre o movimento LGBTQIA+, e quando a Bel me convidou pra escrever sobre o assunto, tudo estava mais que latente na minha cabeça. Nele, eu gritava a peito aberto, do alto do pedestal dos meus recém completos 30 anos e com toda a empáfia do mundo, que não concordava com a semana do orgulho gay, nem com os movimentos envolvidos. Até o nome eu critiquei, e isso me remeteu a uma época em que replicava esta opinião muitas e muitas vezes, nas rodas onde eu achava que precisava de aceitação. Estou aqui, acima de tudo, tentando me perdoar pelas porcarias que eu escrevi lá.

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Em primeiro lugar, quero deixar claro aqui, pra vocês que tem lido a minha coluna no “Estar da Pele”, que a ansiedade sempre esteve presente criando na minha cabeça todos os obstáculos possíveis. Minha primeira crise séria foi exatamente na fase em que eu escondia minha sexualidade dos meus pais e sentia que aquele segredo me rasgava por dentro. Passei quatro noites sem dormir, tive um falso alerta de derrame, acordei minha mãe, desesperado, e fui parar no hospital. Na época, eles não tinham ideia do que acontecia, e eu soando como uma panela de pressão, prestes a explodir. Voltei pra casa, depois de uma injeção de Diazepam no lombo, pra dormir por quase 24 horas seguidas. Só agora, escrevendo este texto, eu percebi que aquele havia sido o primeiro incidente da minha ansiedade do qual eu tenho lembranças. Porém, embora ela esteja em tudo, sempre, hoje não estou aqui para abordá-la. Meu assunto é outro.
Voltando ao meu post de 2011, não vou replicar aqui porque sigo com a minha estratégia de não dar plataforma para palavras idiotas. Mas ele dizia coisas como “minha bandeira é da igualdade”, “não tenho orgulho de algo que me é natural como qualquer outra característica genética” ou “a parada perdeu o sentido, virou um carnaval...” blábláblá, enfim, um discursinho raso e sem empatia.

Eu me pergunto como eu pude tentar descredibilizar um movimento que, por sua luta, permite a mim e a inúmeros outros homossexuais a viver uma vida relativamente normal (pensar que a 50 anos atrás isso seria impensável) e questionar suas intenções? Justo eu, que nunca mal saí da frente do meu celular ou do meu apartamento em Pinheiros para fazer algo realmente significativo. Estava mais preocupado em atingir as metas  que a sociedade dos anos 2.000 entendiam como “aceitável” para um jovem gay e acreditava que minha busca por igualdade era me enquadrar em 100% dos requisitos, me juntando àqueles os quais, em outro momento, eram meus inquisidores, no alto de seus pedestais.

Ingenuidade minha. Porque não existe igualdade. Não ainda.

E, pra eu ver isso com mais realismo, tive que parar de olhar pra dentro da minha bolha. Acabou acontecendo naturalmente, e só percebi com a (vaga) lembrança que o Facebook me trouxe, e que, geralmente, é uma foto antiga ou uma bobeira que escrevi sobre o clima, anos atrás. Isso porque, eu ainda tenho um grupo muito diverso de amigos, não sou mais um “habitué” de baladas gays, e nunca quis mesmo definir minhas amizades por um gênero. Gosto de pessoas, ponto. O máximo da minha expressão gay do momento, além claro do meu militarismo em textos de internet como este que vos apresento, são os episódios de Rupaul´s Drag Race, uma competição de drag queens que eu vejo semanalmente, sem perder nenhum.

Porém, quando eu penso nisso, fica nítido o porquê: mesmo seguindo na minha lúdica vidinha de subúrbio americano, o Brasil continua sendo o país que mais mata o LGBTQIA+ no mundo - pelo 12º ano seguido. A cada 36 horas, um de nós morre ainda por homofobia, independente do que eu tenha falado ou não. Fica claro, pra mim e pra vocês que leem este texto, que o preconceito não diminuiu nem antes, nem depois do meu textinho mequetrefe, só porque eu queria.

Meus sobrinhos foram crescendo e eu comecei a pensar: e se um deles passar por isso agora? Crianças não pararam de ser agredidas e mortas nas portas dos colégios do Brasil e, embora me alegraria dizer que a internet permeia muita informação para os pais e até para as próprias crianças que estão descobrindo sua sexualidade, ela também criou uma massa de gente que despeja hostilidade e preconceito, por mero prazer. A gente os chama de “haters”, mas o correto seria chamá-los pela descrição, em português mesmo, e na falta de uma palavra em nosso vocabulário: “os que despejam ódio”. Fica mais claro o que eles fazem.

Então, um grande amigo meu, irmão na vida e no amor que nos une desde pequenos, me procurou dizendo que seu filho se assumiu pra ele, aos 12 anos de idade. E foi incrível ver o quanto a experiência de entender e aceitar a minha sexualidade, anos antes, o ajudou a passar por esta experiência com muito mais cuidado. Senti um orgulho imenso, mas que não apaga o meu medo ou do meu amigo, do que o seu filho possa passar no mundo afora. Mesmo sem ir tão além, na escola, no transporte público, na rua. Graças a Deus, a gente pode passar por isso juntos com ele. Na realidade de hoje, isso já é uma grande vantagem, tendo em vista que muitos sofrem violência ou são mortos por aqueles que lhe deram a vida, em nome de uma falsa honra baseada sabe-se lá em que.

Nos anos seguintes às minhas infelizes palavras, nós elegemos um presidente declaradamente homofóbico. Mais de 50% da população do país escolheu um representante que sacaneia a comunidade LGBTQIA+ publicamente, sem falar de mulheres, negros, pobres...  mas eu não quero politizar meu texto demais. Só quis dizer que nós continuamos a ser alvo, mesmo anos depois de eu arrotar minhas ignorâncias. Um ano antes da eleição, eu fui alvo dos que hoje apoiam esta insanidade, porque comentei um post contrariando um dos novos ícones da política, o nosso ilustríssimo deputado federal Alexandre Frota, que pegou uma foto minha e jogou na página dele, falou que eu era "viado" e deixou os seguidores dele me apedrejarem. Fui até ameaçado de morte, mas sinceramente, eles me assustaram menos do que eu imaginava. Só consegui tirar minha foto 48 horas depois, e nem parei pra ler o que eles diziam, e isso porque eu aprendi a me defender. Quem está vindo, ainda não. 

A visibilidade trans está começando a apontar no Norte, mas ainda falta demais. Ainda vemos uma pseudocelebridade, como a Íris Stefanelli, ex-BBB atual “No Limite” vomitando em horário nobre da Globo que, na opinião dela, as travestis deviam estudar, procurar um emprego digno, ao invés de se prostituir, como se fosse a coisa mais fácil do mundo ser transexual na sociedade. Como se todo contratante estivesse lá, super “friendly”, esperando para agregar uma pessoa trans, em nome da diversidade. Acorda, Bela Adormecida.

Desde que eu expressei aquela opinião pela última vez, passei a enxergar tudo com outros olhos. Hoje, entendo que falar sobre a minha sexualidade e expor minimamente a minha vida familiar é uma questão de urgência. Que nós só seremos vistos e tratados com normalidade com muita luta adiante, e até lá, se este dia chegar, não podemos nos dar ao luxo de relaxar. E, provavelmente, teremos que lutar para manter esta posição, conquistada a duras penas.

Pra finalizar, eu me lembro de criticar o uso da palavra “orgulho”. Ávido por similaridade, eu dizia a plenos pulmões que não queria ser julgado por características que, no meu ponto de vista, eram físicas, que não me julgava digno de orgulho ou pena. Como se isso fosse realmente mudar o rumo de uma história de milênios. Hoje, o orgulho com o qual digo pra vocês que sou homossexual, casado há 7 anos, respeitado no meu trabalho, pelos meus amigos e pela minha família, não é aquele que julgava quem não alcançou um certo nível de estabilidade, ou aquele que tentava se igualar à uma sociedade que me aceitava apesar disso, e sim, o orgulho de alguém quem passou várias, e segue firme. Ainda arrisco dizer que parte desta realização aconteceu por eu ser quem eu sou, e não apesar disso. E acho que o mais importante, que me traz uma imensa gratidão ao terminar esta crônica e entender minha mudança, é que eu escrevo estas palavras para os jovens que se sentem assim, para os pais que estão vivenciando este momento: que a vida pode dar certo, e pra isso vamos lutar juntos. Vamos ganhar esta pelo exemplo, pela batalha, pela união. E se eu não entendia, há 10 anos atrás, o que era “o orgulho” do qual este movimento é chamado, hoje eu entendo. Nosso orgulho é pela resistência. 



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Carlos Stefano 

Gestor comercial, decorador, escritor e aficionado  por relações humanas e suas ramificações, ele divide suas experiências na coluna Estar na Pele aqui do Bem do Estar.

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Carlos Stefano

Paulista de família mineiro-italiana, casado com o Neto há 7 anos, pai de uma border collie chamada Claire, gerente comercial, decorador, aspirante a escritor, violeiro de barzinho amador, desenhista amador, hiperativo e ansioso assumido.

Acredito piamente que, sempre que eu puder dizer ou fazer algo para mudar o dia, o ano, a vida de alguém, eu faço, sem pestanejar. Sou apaixonado por relações humanas e suas ramificações, portanto compartilhar minhas experiências une estas duas aptidões, em um único objetivo: o Bem do Estar. 

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