Estar na Pele do Kenzo: Página 04
OBRIGADO, MEDO.
Desde novembro do ano passado, tenho praticado meditação diariamente. Na maioria das vezes, faço cerca de 10 minutos diários, logo depois que eu acordo. Identifiquei-me com o aplicativo Calm para meditações guiadas, mas também busco experimentar outras ferramentas (como o Headspace, Insight Timer e Healthy Minds, por exemplo), inclusive sessões de meditação não-guiadas, exercícios de respiração, entre outras.
Mas não é exatamente sobre meditação que eu escrevo hoje. E, sim, sobre outra ferramenta, tão eficiente quanto, mas que costumamos chamar de outra coisa.
O medo é uma ferramenta importantíssima na evolução da nossa espécie porque ele se desenvolveu com um propósito bem útil: nos proteger contra potenciais ameaças à nossa sobrevivência. Quer um aliado melhor do que esse?
Quando nos deparamos com uma situação (real ou imaginária) que não conseguimos decifrar logo de cara, sentimos medo. Esse é o papel que ele cumpre. Nos avisar que algo “ameaçador” que desconhecemos pode estar prestes a acontecer.
Nem sempre esse aviso é certeiro, mas, convenhamos, ele merece esse crédito. A ideia é “melhor prevenir do que remediar”. O medo foi desenvolvido para nos avisar de um potencial perigo SEMPRE, mesmo que a interpretação desse perigo se torne equivocada posteriormente.
Quando nos vemos fazendo uma trilha na Serra da Cantareira, por exemplo, e pisamos num galho de árvore que, mesmo que sutilmente, possa ser interpretado como uma cobra venenosa, imediatamente nosso cérebro vai ativar uma cascata de reações químicas para garantir nossa sobrevivência, sem pensar duas vezes, sem tentar entender o que está acontecendo. Sentimos medo. É melhor prevenir do que remediar. Depois de alguns segundos, sem que essa ameaça se concretize de fato, aí sim, outro sistema de interpretação do nosso cérebro entra em ação para tentar entender o que realmente aconteceu.
Como disse o sábio J. Krishnamurti:
”O movimento da certeza para a incerteza é o que eu chamo de medo”. Ou seja, o medo ocorre justamente na intersecção entre o que JÁ sabemos o que é e o que AINDA não sabemos o que é. O medo existe quando não o conhecemos.
E quando nos tornamos bons amigos, ainda existe o medo?
A melhor analogia que eu já li a respeito do medo, até então, foi essa (do Cory Muscara, pelo mindfulness.com):
Um cão de guarda é treinado para latir sempre que sentir algum tipo de ameaça ou perigo ao seu redor. Por motivos óbvios, ele não quer te causar nenhum tipo de sofrimento. Muito pelo contrário, ele está ali para te proteger. Tudo o que o cão de guarda mais quer é que você reconheça essa possível ameaça que ele vê. Ele só quer ter certeza que você também está atento ao que acontece naquele momento e que poderá agir a respeito, se precisar.
Quanto mais você ignorar o cão de guarda, mais alto ele vai latir. Ele faz questão que você ouça. Enquanto você não for até o portão de frente e mostrar para ele que sim, você também viu o que ele viu, ele não vai te deixar em paz. Por isso, precisamos nos aproximar dele, passar a mão atrás de suas orelhas, dar aquele tapinha na barriga dele e dizer: “Bom menino! Você fez um ótimo trabalho, agora está tudo bem. Pode ir descansar”.
Coincidentemente ou não, o monge vietnamita Thich Nhat Hanh descreve o medo quase que replicando esse mesmo conceito do cão de guarda, quando ele diz:
“Uma das primeiras coisas que podemos fazer para aliviar nosso medo é conversar com ele. Você pode sentar com essa criança medrosa por dentro e ser gentil com ela. Você pode dizer algo assim: ‘Querida criança, sou o seu eu adulto. Eu gostaria de lhe dizer que não somos mais um bebê, indefesos e vulneráveis. Temos mãos e pés fortes, podemos muito bem nos defender.
(…) Em vez de tentar fugir do nosso medo, podemos convidá-lo à nossa consciência e analisá-lo de forma clara e profunda.”
Obrigado, medo. Por ser um fiel escudeiro. Por cuidar de mim e daqueles que eu mais amo. Você fez um ótimo trabalho. Agora, estamos bem. Pode ir descansar.
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Curioso pela profundidade da vida. A escrita para mim é um encontro, comigo mesmo e com o outro. Escrevo para me encontrar e devolver algo de bom no mundo. Nessa busca por encontros mais profundos, criei a SOU - um ponto de encontro para nos conhecermos melhor.