Sintoma e transtorno mental: O destino para o sofrimento

Para início da discussão sobre a noção de Bem do Estar em saúde mental, proponho neste primeiro texto uma inversão da lógica dos conceitos de “saúde” e “doença”. Há uma tendência habitual em classificar os sintomas como resposta de uma má adaptação do organismo ao meio. Essa má adaptação seria sentida e experienciada no corpo por meio de angústia, insônia, mal-estar do dia-a-dia etc. Em contraponto, pode-se pensar que o sintoma seja um sinal daquilo que faz funcionar a vida de alguém.

Foto: Cobro/unsplash

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A maioria das especialidades médicas estabelecem parâmetros para acompanhar o estado de saúde. O diagnóstico da diabetes, por exemplo, é possível pela medida de glicose no sangue. De outra forma, a observação do mau funcionamento de uma veia pode possibilita o diagnóstico de um problema no coração. Mas é impossível criar uma tabela para quantificar o sofrimento humano. Esta é uma das razões que dificultam conceituar a saúde da mente, o transtorno e o sofrimento psíquico.

Na tentativa de resolver essa dificuldade, foram criados manuais internacionais de diagnósticos em saúde mental, como o Cid-10 e o DSM. Este último, hoje em sua quinta edição, propõe que as classificações das doenças acompanhem as mudanças sociais de cada época. Além de padronizar, mundialmente, os diagnósticos, os profissionais de saúde ganham materiais técnicos para generalizar os sinais e sintomas apresentados por um paciente e propõem um padrão na condução do tratamento. Por outro lado, isso implica o enquadramento generalizado da classificação dos sinais e sintomas, o engessamento das questões existenciais do sujeito e, não menos importante, eliminação da subjetividade e da singularidade da existência de cada um.

Além de uma natureza organicista, já que baseada somente nos sintomas, com os manuais psiquiátricos, pode-se chegar à premissa falsa e reducionista de que toda questão existencial e sofrimento são vividos da mesma forma. Eles, por si só, não resolvem o impasse para compreender o mal do estar. Este “mal” do propósito da vida individual, aquilo que faz alguém levantar da cama todos os dias, é experimentado por cada um de forma diferente. As questões existenciais e o sofrimento, nada disso pode ser quantificado.

Não há como negar os aspectos positivos dos avanços da ciência, seja na prevenção ou no tratamento medicamentoso, por exemplo. Mas com o alívio momentâneo, a sociedade tende a ignorar os aspectos mais importantes das doenças mentais. Alguém já disse que “o diagnóstico é um bem necessário e um mal perigoso”. Diante de um manual e do saber que ele pré-estabelece sobre a doença psíquica, não há porque ouvir o que o paciente tem a dizer. Pode estar aí está o grande empecilho para entender as doenças mentais. Mesmo com um manual que oriente os diagnósticos, é somente a própria pessoa quem sabe sobre seu sofrimento e o que o desencadeou.

Essa posição diante dos transtornos produz novamente uma inversão da lógica do cuidado em saúde e sofrimento mental. É necessário partir do princípio que os sintomas são um enigma para a existência do sujeito e não a solução do tratamento. Um exemplo clínico para elucidar a discussão: alguém que faz uso abusivo de álcool e afirma que, todos os dias antes de chegar em casa, passa em um bar na saída do trabalho, para não encontrar o companheiro acordado. Não seria o caso de cuidar, inicialmente, desta relação conjugal, visto que a bebida é um problema secundário? Essa seria a principal diferença entre a queixa sintomática e o sofrimento. O profissional da saúde da mente cuida do sofrimento, não da queixa como tanto se vê.

Voltamos então à premissa inicial deste texto. O sintoma apresentado por cada indivíduo é, além de resposta, uma solução que ele encontra para organizar seu sofrimento.

Enquanto a solução funcionar, a vida corre razoavelmente bem porque o sintoma, por si só, é o destino para o sofrimento. Quando não consegue mais dar seguimento à vida com verdades e princípios apreendidos e pré-estabelecidos, quando um evento da vida cotidiana faz vacilar esse funcionamento “normal” da existência psíquica, o sofrimento – e ninguém escapa dele – pode paralisar a vida, tornando-se um transtorno mental e prático.

A doença perturba o exercício funcional da vida, aquilo que faz o indivíduo e as pessoas a seu redor sofrerem. Diferente de uma dor de estômago esporádica é o desenvolvimento de uma gastrite nervosa crônica. Analogamente, alguém acreditar que é perseguido por seu chefe é diferente de um indivíduo que resolve parar de trabalhar, certo de que todos os seus chefes o perseguem. Nesses dois casos, não é um tratamento para gastrite, nem um novo emprego que resolverão o sofrimento. Os sintomas sempre se ligam diretamente às questões existenciais internas do próprio sujeito. É por isso que as respostas para as dores e prazeres de ser e de estar não se encontram na internet. Tema do próximo texto.

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Mirmila Musse

Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização.

 
Mirmila Musse

Mestre em Psicanálise pela Université Paris VIII (2011), na França. Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Associada ao Centro de Investigação da Ansiedade (Clin-a). Atua em consultório particular desde 2012. Atualmente coordena um Ateliê de Leitura em psicanálise lacaniana no Clin-a e é professora de psicologia na Universidade Paulista (Unip). Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Atua com supervisão clinica e institucional. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização. A singularidade existencial e os destinos do sofrimento psíquico individual e social.


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