Saúde Mental: mentes ao corpo?
Um dialeto de corpo. Neste texto, em outros já escritos e nos que virão, lhes garanto que parto sempre deste repertório: o do corpo. Acontece que um corpo nunca é só um corpo físico. Com ele vem, por exemplo, isso que convencionou-se chamar de mente. E, a isso que chamamos mente, faz-se necessário ainda explicar que não é apenas o cérebro físico, mas tampouco podemos dizer que seja a alma.
Nossa mente é um instrumento do sentido e de sentido. Do sentido, pois, em parceria com todo nosso aparato sensorial e sistema nervoso (do qual faz parte o cérebro), nos informa sobre o mundo com as coisas que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos. E é um instrumento de sentido pois, quando não nos informa diretamente sobre o mundo, cria ou inventa a informação. Sobre nossa alma, posso afirmar, com certeza, apenas que ainda estão tentando descobrir o que seja, e inclusive para descobrir isso talvez a ciência precise repensar como olhar.
Se num dado momento de nossa história humana o embate discursivo privilegiou a perspectiva dualista de corpo e mente, da qual colhemos os frutos (alguns doces, outros nem tanto) até hoje, devemos sempre nos lembrar que a árvore do pensamento cartesiano nunca foi a única no pomar. Variadas matrizes filosóficas e saberes tradicionais, por exemplo, foram originados (e nunca se afastaram) da visão integrada do ser humano para tratar distúrbios da saúde. Com essa premissa gostaria de iniciar nossa conversa.
Não sei se o leitor estaria de acordo, mas a partir de minha experiência pessoal e profissional, percebo que, geralmente, quando nos sugerem que cuidemos do corpo (por algum motivo estético ou de saúde), a tendência é de nos sentirmos culpados. Por ora, não entrarei na discussão do mecanismo da culpa em nossa sociedade, mas perceba que, independentemente do contexto, a tendência é colocarmos a responsabilidade sobre nossos ombros como um autoflagelo. Quando se trata de corpo saudável, os errados somos sempre nós.
Em contrapartida, quando nos sugerem que cuidemos da mente, geralmente, o mecanismo se inverte e, imediatamente, armamos, conscientemente ou não, nossas defesas contra o interlocutor. Quando se trata de mente saudável, os errados são sempre os outros. Claro que essa é uma generalização exagerada e a generalização induz ao erro, mas proponho um raciocínio ao redor dessa dicotomia de percepção do que seria saúde da mente e do que seria saúde do corpo.
“Aqui passa o Trópico de Capricórnio”, dizia a placa que tantas vezes me recordo ler na infância, quando pegávamos a estrada em algumas de nossas viagens de família. Por vezes brincava de erguer os pés como se passássemos sobre uma lombada invisível sobre o asfalto. Fronteiras são sempre representações mentais. Mapas geográficos, a tabela periódica dos elementos químicos, esquemas do átomo e suas partes, todos seguem o mesmo princípio. Com a visão de saúde do corpo e saúde da mente não haveria de ser diferente. Nossa necessidade de representação esquemática e discriminativa nos permitiu avanços indiscutíveis no decorrer da história ao esmiuçar o conhecimento humano em partes, mas, por vezes, isso também nos levou a esquecer da importância de uma perspectiva mais ampla e integrativa. Uma perspectiva não exclui a outra. Ou ao menos não deveria.
A compartimentalização do indivíduo ainda encontra espaço em nossa sociedade, pois certamente esse discurso ainda interessa a muitos.
“Meu corpo, minhas regras”, tornou-se um bordão tão martelado que foi esvaziado de sentido, mas ainda traz uma boa provocação. Se precisamos reivindicar domínio sobre nossa própria carne, significa que interessa a alguém obter esse controle, certo? Oras, deveríamos igualmente então nos perguntar a quem pertence o discurso sobre a mente. Ao DSM ou aos livros de autoajuda? Aos yogues, sábios taoístas, psicanalistas? Aos filósofos, sociólogos, neurologistas? Aos coaches, consteladores, meditadores? À missa, ao culto, à roda, aos astros? À indústria farmacêutica? Empoderamento começa por dentro ou por fora do corpo?
Nossas mentes, tanto quanto nossos corpos, estão envolvidos num jogo delicado de interesses pessoais e conjuntura social. Reivindicarmos saúde, em qualquer âmbito, demanda tanto uma atenção aos fatores externos, quanto um trabalho interno de assunção de nossas escolhas de vida e suas consequências para que alcancemos a mudança que desejamos em nossas vidas.
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Felipe Futada
Professor de Educação Física (USP) e trabalha em escolas da rede particular de São Paulo e em cursos de formação de professores.