Sobre rótulos, saúde mental e rap
Em meus atendimentos em coaching ontológico ouço repetidas vezes, de formas diferentes, auto declarações muito contundentes sobre como as pessoas se veem. Muitas vezes colocadas com uma grande carga de julgamento, cruel e punitiva. “Eu falo demais”, “eu sou muito reativo”, “eu não sirvo para isto”, “eu nunca consigo o que quero”, “eu sou muito preguiçoso”.
Estas declarações tão contundentes me fazem questionar: até que ponto “somos”, e até que ponto “estamos”? Em inglês, o verbo To Be significa, ao mesmo tempo, Ser e Estar. E me parece haver uma grande distância entre estas duas palavras. E que bom que nosso idioma permite essa distinção!
Parece-me razoável, em alguns momentos, de fato declararmos que somos algo. Eu por exemplo consigo afirmar que sou homem, pai, marido, filho, irmão, brasileiro, paulistano e apreciador de música.
Consigo, com menos convicção, afirmar que sou tímido, introspectivo, analítico, que não sou um cara dos esportes, de academia. Com menos convicção ainda digo que sou um cara do Rock and Roll clássico ou que sou um homem racional, ponderado, emocionalmente equilibrado.
Minha convicção sobre estas características, até então rígidas, começa a se desconstruir quando ouço um rap nacional feito em 2019, incrível, com gingado, letras poéticas e ritmo gostoso. Ou quando tomo uma decisão por impulso, levado por minha emocionalidade naquele instante. Ou quando faço uma palestra ou dou uma aula e não vejo minha timidez ali por perto.
Rapidinho deixei de ser o cara do rock, tímido e racional e passei para estar outras coisas. Passei do ser para o estar, sem deixar o ser anterior. Uma mistura gostosa, orgânica.
Estes exemplos simples são para demonstrar o que vejo com muita intensidade em meu dia a dia: os rótulos que nos colocamos continuamente e alguns efeitos perversos em nossa saúde mental. Por que se declarar como sendo uma pessoa de exatas, por exemplo? Por que o uso do Ser ao invés do uso do “prefiro”, ou do “gosto menos”? Até que ponto se declarar como “sou algo” te aprisiona?
Serão estas diferenças de linguagem algo trivial, sem importância?
Tenho a linguagem como principal matéria prima de trabalho e de vida atualmente. Não acredito que as palavras sejam inofensivas, triviais. Cada palavra traz consigo uma contribuição à realidade que o sujeito que fala enxerga. Já o sujeito que ouve, criará uma outra realidade a partir desta mesma palavra. O mundo, para nós humanos, existe na linguagem, como aprendi com Rafael Echeverria, Humberto Maturana e Káritas Ribas.
De um modo ou de outro, a rotulação por si só tem sua importância em nossa sociedade. É útil você saber quem é um Encanador, Médico, Advogado, Professor. Nomear, categorizar, rotular as coisas e pessoas por si só não é algo absolutamente ruim. As vantagens práticas estão aí no mundo e são inegáveis.
A serviço de que estão certos rótulos que as pessoas ou nós mesmos nos impomos? Temos consciência destes? Que tipo de cola queremos que estes rótulos tenham? Aquelas super difíceis de tirar, e que deixam vestígios? Aqueles fáceis, que ao tirar você nem percebe que havia um ali? Quais rótulos queremos defender?
Alguns rótulos podem ser inevitáveis. Outros podem ser desnecessários, temporários. O importante me parece é que tenhamos mais rótulos que sejam frutos da nossa vontade. A forma como olhamos estes rótulos que usamos, pode ser algo relevante ao nosso bem estar emocional e mental. Afinal de contas, rótulos trazem consigo expectativas sobre o seu comportamento.
Um rótulo que tenho gostado muito de pensar é o de “Cuidador de Si”. O cuidado de si como mote, campanha individual, inegociável. Quando alguém me perguntar como me defino, passarei a usar esse rótulo: “sou um cuidador de mim”.
E hoje estou ouvindo rap nacional.
***
João Paulo Ferreira
Coach ontológico, pós-graduado em Finanças pelo Insper e executivo do mercado financeiro.