Quando a gente vai do luto ao “eu que lute”
Perguntei a uma pessoa próxima a mim o que gostaria de ler sobre o luto, ela me disse: “Quando eu penso em luto, eu penso na vida.” Sem saber, ela estava parafraseando o poema chamado “Uma Criatura de Machado de Assis” – “Tu dirás que é a Morte, eu direi que é a Vida.” Os amantes da psicanálise sabem que estamos falando de dualismo pulsional.
Ao longo de 10 meses de isolamento social proveniente da pandemia (cada um leva como pode), por mais que você não faça parte do grupo de risco de morte, também já se viu correndo riscos ao ir trabalhar, ir ao supermercado, chegar na calçada. Nessas situações, inevitavelmente, além de pensar na morte, nos faz questionar a vida.
Pensar na morte do corpo ou de algo é associar a um fim, numa cisão, em algo que se perde. Sabe quando você perde algo (um trabalho, seu celular) ou alguém (sua mãe, seu amor), cada qual na sua proporção, e percebe que não há o que ser feito para reaver? Então, chega num momento que você se dá conta que precisa se despedir, aceitar que perdeu e se desligar aos poucos dessa pessoa ou desse objeto mesmo com raiva, saudade, enfim, mesmo com sentimentos conflitantes, a angústia passa e você volta a viver.
Você ainda pode me perguntar: “E quando essa tal de angústia me empaca e eu mal consigo fazer alguma coisa, mas não sei dizer direito o que é?” Essa pergunta acende uma luzinha de alerta, que ultimamente aparece com muita frequência em meu consultório, um outro tipo de pandemia, a chamada depressão. (Claro, que vai de caso a caso [falo aqui de uma forma geral]).
Há um texto com o título “Luto e Melancolia” de Freud (de fácil acesso aos interessados), que aponta que na condição do luto e da depressão a pessoa perde alguma coisa, ideal ou alguém. Porém na depressão, diferente do luto, não se sabe ao certo o quê ou alguém que se perdeu, por mais que tenha uma vaga noção. Então você não consegue dar “hasta la vista, baby” para aquilo que teve um impedimento, um fim e aparece um sentimento de culpa que não tem uma razão concreta. E por consequência, de alguma maneira, você se identifica com aquilo que não sabe bem o que é. E como não há a localização desse objeto, alguém ou uma ideia em específico que se perdeu não consegue nem sentir raiva disso que foi perdido e, então, esse sentimento de agressão volta contra você em cores de cinza.
Interessante é que você pode chegar à conclusão, se hoje o Brasil é considerado o quarto pais do mundo com mais pessoas depressivas, essas pessoas podem estar vivendo a sensação de ter perdido algo? Com a globalização a sociedade perdeu uma forma de viver que era orientada por referências muito demarcadas, por exemplo, em casa o pai mandando na família, na empresa o chefe que exige de forma totalitária, o famoso “eu mando e você obedece.” Dessa forma, as pessoas tinham uma orientação do que fazer e como se viver, se adaptavam às regras ou se rebelavam e, de certa maneira, sabiam das consequências – Essa segurança da lógica se eu fizer ‘x’ vou ter resultado ‘y’ se perdeu. Atualmente, temos vários tipos de padrões e todos tem suas certezas temporárias, que também criam corpo e depois esvanecem para se inventar minimamente um novo contorno.
Você pode estar pensando: “Que complexo e difícil entender esse processo.” De fato, é muito trabalhoso e custoso atravessar esses momentos de elaboração do luto, para algumas pessoas desde perdas sutis até grandes perdas. Se você se perceber identificado e paralisado diante do impasse de elaborar o que perde ou tem medo de ganhar algo e um dia vir a perder, é um ponto de atenção para buscar apoio profissional de um psicanalista.
Na fantasia que existe alguém pleno e total de zero defeitos, que não é afetado em ter que escolher e lidar com satisfações parcialmente, surge uma fantasia que talvez seja possível em algum momento driblar a condição humana de sempre estar dividido e se tornar completos e preenchidos.
Sabe quando você pensa que quando conseguir aquilo tão esperado aí, então, você vai se sentir absolutamente realizado?
Nesse novo mundo de vastas escolhas, inevitavelmente, se você tem cinco opções e escolher uma, antes de qualquer aposta em ganhar algo dessa uma opção escolhida, você vai se dar conta que vai ter de soltar-deixar as outras nove possibilidades para trás ou minimamente para outro dia. Quem gosta de ler Freud sabe dessa beleza que a castração nos ensina.
Acontece que muitas vezes você faz disso um típico drama de Nelson Rodrigues, um verdadeiro: “Deus me livre, mas quem me dera”.
Isso salva! Faz você acordar e se perguntar: “O que me faz valer viver?”
Se hoje a forma de viver não é somente orientada por padrões estreitos, como: para ser feliz você tem que ter um carrão na garagem e levar seus filhos para a Disney, e sim por padrões diversos, ou seja, há uma vi(d)a vasta para você inventar uma forma de viver singular, criar uma satisfação pessoal que tem o seu nome próprio. “Mas como eu faço isso?” O caminho se faz de caminhada. É no dia de hoje que você cria sua forma consequente de passar pelo mundo.
Com a quarentena que vai da fase vermelha a verde por articulações políticas que alteram critério de flexibilização em questões de dias, sabe-se lá até quando e a morte ganha tela cheia - provoca um questionamento: Você está vivendo seu tempo de vida sendo feliz com as satisfações parciais possíveis ou está querendo ter razão? Como está o “Eu que lute” como o tempo de vida que é tão breve?
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Jéssica Magalhães
Sempre foi curiosa quanto ao sentimento contraditório do ser humano e se questiona como que a partir dessa ambivalência as pessoas podem se beneficiar na vida. Psicóloga e psicanalista, membro do corpo de formação em psicanálise e do núcleo de reprodução assistida humana do Instituto de Psicanálise de São Paulo.