Conflito: mudando a rota do confronto para a conexão

Qual é a sua ideia de conflito? Você se sente confortável ou desconfortável quando vivencia um conflito? Geralmente o conflito é visto como uma situação desconfortável em que há um jogo de argumentos de um lado a outro numa busca por quem está certo, quem é o culpado, dificilmente encontrando-se uma solução satisfatória aos envolvidos e, até, trazendo-se à discussão atual questões de conflitos anteriores, uma vez que a causa não foi de fato resolvida e o incômodo permanece latente.

Foto: Adi Goldstein / Unsplash

Foto: Adi Goldstein / Unsplash

Vivemos habitualmente no modelo ataque-defesa/vítima-culpado em que reagimos automaticamente a um estímulo externo provocado quando o outro apresenta uma opinião divergente ou seu comportamento não atende às nossas expectativas. Essa reação pode se apresentar como um ataque ao outro, buscando submetê-lo ao nosso padrão, ou uma autodefesa, tentando responsabilizar o outro ou terceiros para justificar nosso comportamento. O conflito é interpretado como um espaço de guerra, em que somente pode haver um ganhador, no qual o outro é nosso adversário e não um parceiro com quem podemos construir uma solução. O “ganhador” consegue atingir seu objetivo não mediante um consenso, mas por submissão do outro, isto é, o “perdedor” não tem o seu interesse contemplado e atende ao interesse do “ganhador” por medo, culpa, vergonha. Marshall Rosenberg traduz sabiamente:

Quando não somos capazes de dizer com clareza o que precisamos e só sabemos fazer análises sobre os outros que soam como críticas, acabamos em guerra – sejam elas verbais, psicológicas ou físicas.
— Marshall Rosenberg

Esse paradigma de que conflito é um problema nos induz a querer evitá-lo em nossas vidas, afinal não queremos guerra, queremos paz e felicidade. A crença de que uma vida feliz é uma vida sem conflitos nos influencia a validar apenas aquilo que reflete nossos próprios pensamentos, opiniões, gostos, enfim, buscamos nos afastar do que é diferente, pois entendemos que o diferente gera divergência, ou seja, conflito.

Ocorre que o conflito é inerente às relações humanas, visto que cada um de nós é um ser humano complexo e diverso um do outro; compartilhamos necessidades humanas universais ao mesmo tempo em que temos prioridades diferentes e formas diversas de atender a tais necessidades de acordo com nossas experiências de vida, nossa cultura, condição social, entre outros tantos aspectos influenciadores.

Dentro desse modelo tradicional tendemos a adotar as seguintes posturas: a) culpar o outro, b) assumir a culpa, ou c) fugir do conflito sem abrir espaço de diálogo; por consequência, não resolvemos o conflito efetivamente, não encontramos alívio dos sentimentos desconfortáveis que vivenciamos e cada um acaba por enterrar dentro de si tudo o que emergiu à superfície durante o conflito, acumulando frustrações e outros sentimentos e necessidades que não tiveram espaço de acolhimento e expressão, ou sequer foram compreendidos por nós mesmos. Como efeito um ciclo autodestrutivo se retroalimenta, aumentando cada vez mais a desconexão nas relações, até que alguém “exploda” e o relacionamento chegue ao fim ou alguém pague um preço bastante alto por ela, caso a relação se mantenha, p. ex. sofrendo em silêncio, o que pode levar ao desenvolvimento de diversos transtornos mentais como depressão e ansiedade. Esse é o resultado que queremos? Tenho convicção de que não!

Ao perpetuar esse ciclo focamos em nossos julgamentos e não sobre os fatos em si, nossos sentimentos não são acolhidos por nós nem pelo outro e não conseguimos mapear as necessidades que ficaram desatendidas em cada um daqueles conflitos – isto é, o que era essencialmente importante para nós e não foi contemplado. No meio dessa tormenta interna não há possibilidade de criarmos espaço para escutar o outro com empatia e reconhecer todos os sentimentos e necessidades que ele também carrega dentro si. Pois é aqui que a comunicação não violenta (CNV) pode nos ajudar, e muito! Trago hoje um novo olhar sobre o papel do conflito em nossas vidas.

Creio que em nosso íntimo buscamos relações em que possamos nos sentir livres para ser quem somos, expressarmos nossos sentimentos e necessidades com a confiança de que seremos ouvidos, acolhidos e considerados. Veja, não falei em concordar com a opinião ou comportamento do outro, falei em espaço de acolhimento e escuta, pois é disso que carecem nossas relações, liberdade e confiança para sentir e expressar o que está vivo dentro de cada um de nós.

A CNV nos apoia na construção desse espaço nas relações, baseada especialmente na empatia e na compaixão.

Com a CNV aprendemos a identificar nossos julgamentos sobre o fato, somos encorajados a acolher os sentimentos que emergem e a traduzir o que esses pensamentos e sentimentos querem nos dizer, isto é, quais necessidades são importantes mas não estão sendo supridas em cada situação. Com essa consciência abrimos espaço interno para apoiar o outro a realizar esse mesmo processo oferecendo-lhe uma escuta acolhedora e permitindo que ele expresse o que está vivo nele, o que geralmente o torna disponível a também nos escutar e acolher. Seguindo esse processo de empatia temos maior possibilidade de nos expressarmos sem a interferência dos pensamentos julgadores e fazermos a transição do modelo ataque/defesa para a conexão, o que certamente facilitará a busca de uma estratégia que possa atender às necessidades de ambos de forma satisfatória.

Gosto de lembrar da frase de Dominic Barter “o conflito é uma nova informação tentando entrar no sistema”, pois ela me ajuda a colocar o conflito num outro patamar e passo a enxergá-lo como uma possibilidade de conhecer algo diverso do que já existe em meu repertório, uma oportunidade de enriquecer minha experiência de vida e minhas relações – ou seja…

o conflito é um estímulo para que eu enxergue a mim e ao outro com humanidade e busque compreender o que é importante para ambos e como podemos encontrar um caminho que atenda a nós dois.

A partir desse novo paradigma e abraçando a prática da CNV, o conflito deixa de ser um lugar de confronto e se torna uma oportunidade de conexão intra e interpessoal, pois nos permite escolher novas formas de lidar com as divergências e mergulhar no oceano dos sentimentos e das necessidades humanas que compartilhamos. Quando esse mergulho interno ocorre começamos a desenvolver nosso autoconhecimento. Se apenas prendermos o ar conseguiremos fazer um mergulho raso e rápido – refiro-me ao modelo de ataque-defesa -, em contraponto, a CNV funciona como um cilindro de oxigênio para que possamos mergulhar em águas bem mais profundas e explorar o fundo do mar com calma e atenção. P.ex. se meu companheiro desmarca um compromisso que combinamos eu posso me sentir irritada, frustrada e triste e perceber que intimidade, cuidado e atenção são importantes para mim nessa relação. A partir dessa auto-observação, ao invés de ficar emburrada e pensar que ele não liga para mim, que não sou importante, que ele é um péssimo companheiro – o que gera desconexão imediata com o outro -, conseguirei chamá-lo para uma conversa muito mais rica, onde o objetivo não será criticá-lo ou me vitimizar, mas sim contar como essa situação me afeta, convidá-lo a me contar como isso ressoa para ele e também escutar seus sentimentos e necessidades para, então, buscarmos juntos estratégias para que ambos se sintam considerados na relação. Perceba que aqui o foco é a conexão, a compreensão do que é importante para cada um e o fortalecimento da relação.

Passamos a enxergar o que vibra dentro de nós, a acolher o sentir como um processo natural e nos libertamos das correntes do julgamento de certo e errado, de culpa, libertando também o outro. Conseguimos perceber que o outro também tem seu pacote de sentimentos e necessidades relacionado ao conflito e abrimos espaço interno para escutarmos um ao outro e acolhermos a humanidade que existe em cada um de nós – esse é o ponto de conexão.

Conectados e sentindo que somos vistos e considerados em nossa plenitude temos muito mais disposição para cuidar de nossas relações e resolver o conflito buscando estratégias que cuidem de ambos integralmente. Acredito que esse, sim, seja o resultado que queremos!

É possível transformar o conflito numa oportunidade de aprendizado e evolução, de fortalecimento da nossa conexão, primeiramente conosco e depois com o outro. Dessa forma, conseguiremos construir relações mais saudáveis e aprofundaremos nossas experiências de vida. É tão mais interessante viver assim! Vale um spoiler, não é mais fácil, mas é mais intenso e verdadeiro. Não é uma mudança do dia para a noite, demanda vontade e dedicação para subverter o processo mental habitual e inconsciente ao qual já estamos condicionados. E se perceber que voltou ao modelo padrão, não se penalize; quando isso acontecer, respire fundo e retome sua intenção de conexão. É uma jornada para toda a vida!

Convido vocês para que no próximo conflito se permitam um olhar mais curioso considerando-o como uma oportunidade de mergulhar dentro de si e convidar o outro a fazer o mesmo, para depois, juntos, explorarem um oceano de possibilidades para tornar sua experiência de vida mais livre e profunda.

E aí, aceitam meu convite?

***

Debora Andrade

Instrutora de mindfulness no modelo neurocognitivo pelo Mindfulness Centre of Excellence / Londres, multiplicadora de comunicação não violenta, membro da Rede Desacelera. Ofereço treinamentos dedicados à promoção da qualidade de vida e bem-estar, autoconhecimento e conexões humanas. Acredito numa vida desacelerada para um viver com mais presença, gentileza, consciência e intencionalidade.

Debora Andrade

Aprendiz da vida, em constante (des)construção, praticante de yoga, meditação e corrida, interessada em temas relacionados ao autoconhecimento, gestão das emoções e relacionamentos interpessoais. Acredito na vivência do ser humano em harmonia com a natureza. Estou cursando formação em Comunicação Não Violenta. Já atuei como advogada especialista em contratos no mercado corporativo por mais de 10 anos. Atualmente me dedico a projetos que envolvam a prática e disseminação da comunicação não violenta em prol de um mundo de paz.


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