Estar na Pele do Flávio: Página 02

Há muito tempo que considero o ano de 1980 como o mais incrível da minha vida. Se o clique da adolescência só surgiu aos 15 anos, em 1978, quando passei a enxergar o mundo de forma muito mais crítica, a ponto de contestar tudo que antes passava incólume pelos meus olhares e ouvidos, foi aos 17 que uma série de fatores ocorridos concomitantemente mudaram de vez o panorama.

O primeiro deles veio com a literatura e a poesia. As aulas finalmente se tornaram interessantes a partir do Modernismo, fazendo com que aos poucos a tendência em escrever poesia rimada e de métrica regular fosse abrindo espaço para versos livres e sem amarras. E o gosto da liberdade é algo que não se pensa em definir, apenas sentir.

Em conjunto, as aulas de redação com um dos professores mais fantásticos que já tive o prazer de conhecer, sendo mais um sopro de incentivos e visões diferentes do que estava acostumado, abrindo um universo enorme de possibilidades no mundo das letras.

A adolescência sempre será adolescência, mas é claro que cada época tem seus costumes e características próprias. Cursando o terceiro ano do hoje ensino médio, escrevendo poemas e falando que nem um tagarela, além de um constante bom humor, conhecer cada vez mais gente no colégio era um acontecimento diário.

Escrever poemas para as amigas começou a virar rotina. Não, nenhuma namorada, mas muitas pessoas cuja amizade brotou naturalmente, inclusive permanecendo até hoje, mais de quarenta anos depois.

Eu tinha o costume de escrever meus novos poemas nas folhas de um caderno com espiral. Depois de escritos, passava a limpo ali para que pudesse entregá-lo para quem os inspirou. Ao longo do ano foram cerca de 150 poemas escritos! Nem todos para as damas, mas vários deles, sim.

Porém, o acontecimento que mais me marcou, me levando a escrever o último parágrafo da página 01 dessa série, aconteceu com uma colega com quem tinha pouco contato, basicamente bom dia, boa tarde, como está, pouco além disso.

Nós estudávamos no período da manhã, de segunda a sábado. Certo dia, no meio da tarde e já em casa, me lembrei dessa menina e acabei fazendo um poema para ela. Bem simples, versos incipientes de alguém que ainda estava engatinhando na arte dos versos. Mesmo processo, escreve o rascunho, que geralmente saía todo cheio de garranchos para acompanhar a velocidade do pensamento, depois passava a limpo no caderno para ser entregue assim que encontrasse com quem o inspirou.

No dia seguinte, lembrando que ela sempre chegava mais cedo, fui até a sala dela. Eu a encontrei sentada diante de sua escrivaninha, me dirigi até lá e sentei na escrivaninha que ficava logo a frente, iniciando um diálogo do qual me lembro até hoje:

- Bom dia, tudo bem?

Ela respondeu que sim, então prossegui:

- Você gosta de poesia?

- Gosto. – ela respondeu sem muita convicção.

- Quer ler um poema que eu escrevi?

Ela falou que tudo bem, recebeu o caderno das minhas mãos aberto na página com o poema, leu rapidamente e não comentou nada.

- Gostou?

Ela respondeu que sim, educadamente, mas sem maiores entusiasmos.

- Você sabe arrancar folha de caderno? – perguntei.

- Sei. – respondeu dando uma pequena risada.

- Então pode arrancar essa folha porque o poema é seu.

Como era de se esperar, ela ficou surpresa com a revelação, me deu um sorriso e agradeceu o presente. Acho que foi tão inesperado que não teve mais nenhuma reação. Eu me despedi, pois a aula iria começar em breve ali, e saí da sala.

Quando terminou a aula, eu estava no pátio que ficava em frente à sala de aula dela, conversando com outros colegas. Como estava de frente para a porta da sala, vi quando ela saiu, me avistou e veio em direção ao meu grupo, parando próxima a nós e esperando os outros saírem para falar comigo. Quando eles se foram, ela veio conversar:

- Sabe, hoje não eu estava bem, desde que acordei me sentia assim. Até por isso não fui muito atenciosa. Depois que você foi embora, eu não consegui prestar atenção na aula, fiquei o tempo todo pensando no que aconteceu e torcendo para a aula terminar, pois precisa falar novamente com você. Eu só queria te agradecer porque esse seu poema, vindo assim do nada, mudou completamente como eu me sentia. Eu não tinha nada demais, mas a gente sempre acaba acreditando que é algo a mais e fica mal. Muito obrigada!

Como ia começar a segunda aula, ela me deu um abraço, um beijo no rosto, estava com o olhar radiante e cheio de lágrimas. A última imagem que eu me lembro foi o sorriso e o caminhar saltitante dela em direção a sua sala.

Naquele dia eu aprendi o poder das palavras e, mais ainda, o poder que elas têm para deixar os dias melhores. Aos 17 anos não se tem maturidade ainda para conseguir transformar isso em algo mais firme no nosso jeito de tocar a vida, muito menos entender a dimensão dessa descoberta, mas certamente ajudou bastante a entender que valia muito a pena um sorriso, uma palavra amiga, um afago.

Não é tão simples fazer isso sempre, pois a vida também nos faz tropeçar, nos magoa, machuca, nos desanima vez ou outra. Mas o melhor de tudo é a sensação agradável que nos toma corpo e alma em saber que ajudou alguém a ter um dia melhor, é como se tivessem feito o mesmo para nós.

Emoções não são brinquedos, elas nos afetam e muito. Aprender a lidar com elas, seja individualmente, seja coletivamente, é um longo caminho. Às vezes faltará iniciativa, noutras faltará vontade ou energia, mas o principal é ter em mente que faz bem, para si e para quem está a sua volta.

E se não der certo alguma vez, sempre é bom lembrar da Dori: “continue a nadar” ...

***

Flávio Berto

Eu comecei a escrever em prosa aos 14 anos, em versos aos 16. Romances e poesias se tornaram o caminho natural para tanta necessidade de grafar palavras no papel, sendo que mais tarde a poesia se expandiu para a composição de letras e melodias. Não consigo passar um dia que seja sem escrever algo ou criar alguma história na minha cabeça. O mundo das letras, mais que um universo fantástico e inesgotável, nos apresenta também a magia que as palavras têm e o quanto elas preenchem cada momento de nossas vidas. É um aprendizado eterno e, se bem trabalhado, um dos melhores meios para tentar tornar esse mundo um lugar mais agradável para se viver.

Flávio Berto

Aquariano, nascido nos anos 60, engenheiro de profissão, escritor e compositor de alma. Racional para o cotidiano, a flor da pele para tudo o mais que é da vida. 95% Luke Skywalker, 5% Darth Vader, pois infelizmente nem tudo são flores. Pai da Sabrina e da Carol, com quem vive uma relação de sangue, amor, carinho e responsabilidades desde que nasceram. Mais do que pai, um "paixonado".


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