Estar na Pele do Carlos: Página 07

Ilustração do autor Carlos Stefano

Geralmente, toda vez que o Bem do Estar me abre este lugar de fala, meu primeiro pensamento é relatar situações em que encontre ganchos sobre assuntos onde eu identifique gatilhos para a minha ansiedade (quase toda situação cotidiana, posso escrever páginas da forma como o atendimento de serviços em geral já me geraram crises homéricas, o que fica pra uma próxima) mas que tenha relevância para o momento em que vivemos. Porém, poucos assuntos me geram tanta repulsa como a morte do jovem congolês Moise Kabagambe (comecemos dando nome e sobrenome para quem merece) em uma barbárie covarde, supostamente por uma cobrança de salário atrasado em um quiosque do Rio de Janeiro em que o jovem trabalhava. 

Neste exato momento, meu coração aumentou de ritmo e já sinto um aperto no peito. Fico me perguntando como eu, um homem branco, posso abordar um assunto tão sensível e importante de maneira respeitosa sobre um jovem cujos pais atravessaram o oceano para fugir de um país permeado de guerra civil, doenças e desigualdade, em busca de oportunidades no Brasil, e acabaram perdendo o filho da maneira que eles mais temiam: um massacre público, um tribunal do povo, que decidiu ali, naquela hora, que o garoto era culpado. Isso é o que se conta, mas vamos por este caminho para que meu relato não seja considerado um ato político.  

Como já falei anteriormente, sou nascido e criado na periferia de São Paulo. E grande parte dos meus irmãos de infância são pretos. Jogávamos bola na rua, e mais tarde adolescentes, frequentamos os mesmos lugares, ouvíamos as mesmas músicas, dançamos as mesmas músicas. Eu danço samba rock, meus ritmos do coração são o samba, o R&B e o rap, dancei em um grupo de streetdance em que eu e mais um amigo éramos os únicos brancos. E diferente do que você possa imaginar, eu via diariamente as diferenças que sociedade propunha para todos nós, mesmo que fôssemos, pra nós mesmos, farinha do mesmo saco. Vi um policial bater na cara de um amigo por nada, e chamar ele de neguinho safado, enquanto parava nossa pelada na pracinha, a troco de nada, por farra. Tínhamos 10 anos na época e aquilo me marcou tanto, que eu lembro como se fosse hoje. Ali, eu entendi o racismo, da pior maneira possível. 

E que fique claro, eu não tenho propriedade alguma pra falar sobre preconceito de cor, pois eu não sou preto, nem fui tratado da mesma maneira ao longo da vida. Pelo contrário, tenho plena ciência de que minha pele branca e meu sobrenome italiano me deram muito mais oportunidade do que a maioria dos jovens da periferia.  

Sinto-me, ao mesmo tempo, agradecido e revoltado, pois não consigo achar isso aceitável. Porém, eu sei claramente sobre o meu dever como ser humano, e parte de uma minoria, quando exponho este tipo de história. 

Moise e seus companheiros refugiados são uma ponta ainda mais solta na linha da sucessão de poder, pois são fruto da imigração dos países africanos. Estes dias, por acaso, assisti a um filme chamado “Uma Boa Mentira”, com a Reese Whiterspoon, em que ela interpreta uma mulher branca que ajuda 4 jovens refugiados do Sudão a se estabelecer nos EUA, e nele se revela uma informação importante: os imigrantes da África, no Texas onde se passa a história, só são selecionados para trabalhos de estoque ou fábrica, onde não precisam lidar com público, com a justificativa de protegê-los de situações vexatórias. Para os trabalhos de campo, eram escolhidos os refugiados “brancos”, de regiões do Oriente Médio. Uma segregação que me soa exatamente como a época da escravidão, ou mesmo a época dos anos 60, onde haviam lugares para brancos e pretos no sul norteamericano. Então, no momento, nós aceitamos o povo preto, mas somente os nossos. Racismo seletivo, é a nova.

Voltando ao nosso tão caloroso e receptivo país, uma testemunha afirmou, esta semana, que tentou cessar os ataques a Moise, porém um dos agressores afirmou que ele estava recebendo um “corretivo”, pois estava assaltando pessoas na praia. É pelo menos a quinta versão desleixada que ouvimos sobre os motivos que levaram homens brancos a assassinarem friamente o jovem em dia de praia lotada, sem nenhum pudor. Mas a verdade é que não precisa de motivo para que homens brancos muitas vezes sem vínculos, se juntem, sem grandes perguntas, para agredir um homem preto . 

O corretivo que não corrige. O corretivo que mata. 

Aliás, o segundo momento em que me conectei a nível emocional com o preconceito racial, foi quando eu aceitei minhas responsabilidades como parte de uma minoria também. Ali, eu entendi que somos vítimas das mesmas pessoas (as contentoras da compreensão absoluta do certo ou errado) e parei de me esconder sob o véu da minha “privacidade”. Mas tem uma diferença: eu tinha como me camuflar em meio aos inimigos. Moise, não, e nem deveríamos precisar, pois nossa maior similaridade é de que nascemos assim e isso não poderia ser motivo de julgamento. 

Com a internet, o caso do congolês ganhou repercussão internacional, o que forçou os órgãos públicos a caçarem cabeças, para provar que histórias deste tipo não ficam impunes. Pelo menos aquelas que a gente sabe, pois muitas vezes nada acontece. O Prefeito do Rio deu à família de Moise a concessão do quiosque no qual o seu filho foi brutalmente assassinado. Um quiosque por um filho morto. Claramente eles aceitaram, pois estavam a mais de 20 anos no país vivendo em condições miseráveis, e aprenderam a perder filhos para a fome, a matança, para a impunidade da milícia congolesa... só não esperavam encontrar a milícia carioca, mas não quero levantar suspeitas infundadas. Só gerar reflexão. E casos como este invadem diariamente minha timeline, como um menino, parente de alguns amigos que foi acusado de roubar um relógio na Centauro sem motivo algum ou o caso do jovem Durval, que foi morto por um militar, seu vizinho, que o confundiu com um ladrão e nem se deu ao trabalho de conferir. Saiu mandando bala, do alto da sua empáfia militar armada. 

Só de ponderar sobre isso hoje, perdi a fome e me sinto nauseado o todo tempo, imagine quem vive isso no dia a dia, na pele.  O aperto no coração eu já não sinto, pois tomei remédio para crise de ansiedade, achando que seria demais pra abstrair todo este sentimento de repúdio.

E pra encerrar este relato, vou parafrasear uma das vozes mais fortes da luta mundial contra o preconceito racial, a “mulher do fim do mundo”, Elza Soares, que nos deixou há algumas semanas:

“A pele mais barata do mercado é a pele negra”. Só já passou da hora de não ser mais.

***

Carlos Stefano 

Gestor comercial, decorador, escritor e aficionado por relações humanas e suas ramificações, ele divide suas experiências na coluna Estar na Pele aqui do Bem do Estar.

Carlos Stefano

Paulista de família mineiro-italiana, casado com o Neto há 7 anos, pai de uma border collie chamada Claire, gerente comercial, decorador, aspirante a escritor, violeiro de barzinho amador, desenhista amador, hiperativo e ansioso assumido.

Acredito piamente que, sempre que eu puder dizer ou fazer algo para mudar o dia, o ano, a vida de alguém, eu faço, sem pestanejar. Sou apaixonado por relações humanas e suas ramificações, portanto compartilhar minhas experiências une estas duas aptidões, em um único objetivo: o Bem do Estar. 

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