O que "Anna Karenina" me ensinou sobre viver com depressão
Um bom romance pode ser um lembrete de que outras pessoas suportaram tragédias, provações longas, probabilidades ruins.
Em uma noite úmida de setembro, liguei para um centro de crise de saúde da mente. Eu disse ao voluntário, que me atendeu. que quando olhava para o futuro, não via nada de bom. Eu me sentia tão, esmagadoramente, sozinha no mundo, que fiquei apavorada.Eu temia que o desespero, que me assombrava há tanto tempo, acabaria me matando. O que eu poderia fazer?
O voluntário sugeriu que eu tomasse um banho quente.
Interessante que em setembro ainda estava, aproximadamente , 27 graus às 19h horas. Eu estava suando em uma velha casa abafada, no interior de Nova York, e queria um banho quente, tanto quanto queria andar sobre uma cama de brasas ardentes.
Meu silêncio levou o voluntário a tentar novamente: "Você poderia colocar a chaleira para esquentar e tomar um chá de ervas?"
Através dos meus dentes, eu rosnei: "Eu não quero chá".
O conselho do voluntário parecia ridículo, inadequado para a minha situação. Eu lhe dissera que o aniversário do suicídio do meu pai estava se aproximando; que ele nunca se recuperou da morte da minha mãe, quando eu era pequena; que seu tormento, atormentando-me, sempre foi um peso para mim. Eu expliquei que meus problemas para dormir e a fadiga, debilitante da minha depressão, vinham enfraquecendo-me por quase 20 anos, tornando a vida uma provação implacável. Eu mal queria viver comigo mesma; como alguém mais iria querer morar comigo - ou me amar?
Levantei a cabeça para considerar essa ideia.
Um bom livro - geralmente, isso ajudava. Um bom romance é uma ótima companhia, menos uma fuga da vida, do que uma maneira diferente de se envolver. Um bom romance é a certeza de que outras pessoas suportaram tragédias, provações longas e probabilidades ruins. É uma prova de que não estou sozinha - não na história da humanidade, pelo menos. Um bom romance, geralmente, termina com uma nota ambígua - mas todo romance também implica um sobrevivente, ainda vivo, para contar a história. Um bom romance é uma forma de esperança.
Mas, embora eu estivesse muito envolvida em um romance excepcionalmente bom, uma obra-prima, na verdade, fui obrigada a deixá-lo de lado alguns dias antes. O livro foi "Anna Karenina", famoso por um suicídio. Eu já havia lido cerca de 700 páginas quando o desespero da protagonista acelerou mais a velocidade, assim como meu próprio estado se deteriorava. Temendo que os pensamentos obscuros de Anna escurecessem os meus, parei de ler.
Mesmo assim, depois que desliguei o telefone, sentei-me ao lado de “Anna Karenina” no meu sofá e me perguntei se ele era, realmente, um perigo para mim. A Anna suicida não estava sussurrando diretamente no meu ouvido, enquanto eu lia. Ela não estava me convencendo, quando se convenceu. Em vez disso, um narrador onisciente, de intuição psicológica brilhante, estava me contando todos os lados da história de Anna - me dando acesso não apenas à mente de Anna, mas também às mentes das pessoas ao seu redor. Dessa forma, o narrador criou uma imagem mais bem equilibrada do mundo de Anna, do que eu teria se eu tivesse ouvido apenas dela.
Eu li além do ponto de quando Anna se afasta de tudo - seu marido rígido, sua posição na sociedade, até mesmo seu amado filho - para morar com seu amante, o conde Vronsky. O irmão e a cunhada de Anna permanecem leais a ela, mas seus velhos amigos a evitam, tratando-a como uma mulher "decaída". Com isso, ela fica cada vez mais isolada. Em seu confinamento psicológico, ela não consegue evitar sua mente provocando-a com a ideia de que Vronsky se cansou dela e agora ama outra pessoa.
Embora eu não tivesse marido ou amante, entendi como Anna se sentia: eu sentia que o mundo se cansou de mim. Mas eu também conseguia entender Tolstói, quando ele me levou à mente de Vronsky e vi que Vronsky era um homem de princípios reais, embora não convencional. O conde continuava comprometido com Anna, respeitoso de tudo o que ela abriu mão por ele e determinado a cuidar dela - mesmo que o ciúme dela afaste seu amor.
Talvez a leitura não fosse doer.
Então eu me servi um copo de água gelada e peguei “Anna Karenina” novamente.
Virei as páginas e encontrei Anna em colapso sob o peso de sua ansiedade. Ela envia uma mensagem para Vronsky com um pedido urgente: “Venha imediatamente”. Vronsky nunca recebe sua mensagem. Mas, Anna não percebe isso. Ela entende a falta de resposta como prova de que o amor deles está morto. Sentindo que tudo está perdido, ela se dirige para uma estação de trem.
Eu sabia que Anna se mataria ajoelhada diante de um trem, então eu pedi para ela parar o que estava fazendo e voltar:
Ao dizer isso a ela, parecia que dizia algo parecido a mim mesma: não estou totalmente sozinha. Eu tenho uma irmã dedicada e um grupo de amigos que me apoiam; até mesmo uma "fada madrinha", a mãe de um dos meus amigos mais próximos, de compaixão admirável, que muitas vezes conversa comigo nos meus momentos mais sombrios. Eu tenho mais opções do que outras pessoas que sofrem de depressões maiores que a minha e que não têm onde morar, são dependentes químicos, ou estão presas. Eu ainda tenho muita vida pela frente.
Em outras palavras, Tolstói não estava projetando em mim uma voz que refletia a de Anna. Em vez disso, ele estava me convocando, chamando-me para falar com Anna e com a Anna em mim.
Claro, nada do que eu disse mudaria a mente de um personagem fictício. Anna desce para os trilhos. Em seus segundos finais, ela tem uma percepção esmagadora: “De repente, a escuridão que a assombrava se rompeu e a vida se iluminou diante dela, momentaneamente, com todas as suas alegrias passadas. … Ela ficou horrorizada com o que estava fazendo.” Horrorizada - mas tarde demais. A locomotiva já a atingiu. Sua vida acabou - e ao se destruir, ela também despedaça a Vronsky, deixando-o com o sentimento de culpa e com a tristeza que ela deixa para trás..
Tolstói começa seu romance com a agora famosa frase sobre como todas as famílias felizes são iguais e como todas as famílias infelizes são, igualmente, infelizes. Ele volta para aquele início em suas páginas finais: depois que Anna morre, a outra história principal do livro é resolvida com um casamento alegre e o nascimento de um menino. Mas, o final feliz só me irritou. Foi a história trágica de Anna que, paradoxalmente, melhorou meu ânimo.
Embora a visão limitada de Anna a tenha matado, ela ajudou a me afastar da minha própria visão micro para uma visão mais ampla da minha vida. As nuvens poderão descer novamente, é claro, mas as alegrias da vida também podem surgir de novo, suas grandes histórias podem me levantar novamente, contanto que eu permaneça viva para elas.
Maura Kelly está escrevendo um romance. Ela encoraja qualquer pessoa que passar por uma crise de saúde da mente a buscar ajuda.
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Artigo originalmente publicado no New York Times, livremente traduzido e adaptado por Mariana França.