“Eu Queria que Essa Fantasia Fosse Eterna”

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara.

Clarice Lispector, Restos de Carnaval.

Foto: Noah Buscher / Unsplash

Foto: Noah Buscher / Unsplash

Estava, outro dia, conversando com amigos sobre como poderia escrever este texto. Um deles citou o conto do Mário de Andrade chamado “O Peru de Natal”, ao que respondi: “Este conto parece com o da Clarice Lispector, “Restos de Carnaval. Naquele momento ainda não havia entendido por que associei os dois. Não por destino, achei que assim deveria começar este texto. 

Não abordarei aqui as representações simbólicas das festas pré-estabelecidas nos calendários, como Natal, Ano Novo, Carnaval e aniversário. Grosso modo, culturalmente representantes da gratidão, da renovação, das fantasias e de um novo ciclo. Épocas que também poderiam ser lidas respectivamente como o espetáculo do consumo, das promessas que não se cumprirão, da libertação de todos os desejos não permitidos durante o ano e do envelhecimento.

Primeiro é preciso assumir que se trata de uma marcação de tempo que inaugura um antes e um depois, mas não necessariamente um passado, um presente e um futuro. É necessidade do ser humano estabelecer um calendário, pois a orientação temporal nos dá consciência de nossa existência, sensações e emoções. 

Mas estas marcações temporais não são somente cronológicas, mas também lógicas. Diante desta última, propõe Lacan: instante de ver, momento de compreender e tempo para concluir, em um circuito em que qualquer acontecimento significativo, ao ser vivido, precisaria necessariamente passar por elaboração. Chegamos ao denominador comum: a passagem de um ciclo implica da saudade idealizada à tristeza vaga. Esse raciocínio pressupõe duas ideias: uma primeira, do ato e do desejo e a segunda, a pulsão de vida e de morte. Aqui está a associação que fiz entre os contos!  

Nessas duas histórias a morte ronda e ganha a cena do Natal e do Carnaval. Em “Peru de Natal”, ela surge como aquilo que permite e inaugura um jeito inédito de gozar a vida. Em “Restos de Carnaval” ela é aquilo que barra e interdita um jeito também inédito do personagem de desfrutar da vida. A marcação do tempo no calendário é, nos dois casos, simbolizada pela vida e pela morte, aquilo que foi ou que poderá ser, novamente o que dá sentido à existência. Mas isso também poderia ser compreendido na marcação do dia e da noite, das estações do ano, no acordar e dormir. Para que se tenha noção da existência do um precisa-se do outro.

Por que então considerar apenas estas datas como a renovação do ciclo? Mais do que isso, por que máscaras e fantasias para autorizar-se aquilo que se deseja? O que elas implicam no nosso modo de gozar, se comportar e desejar?

Estas perguntas nos levam à nossa primeira premissa: a lógica do desejo e do ato frente a eventos significativos do ano. Nos dois contos é graças e somente pela marcação do calendário que é possível inaugurar um novo jeito de viver. Mas, além disso, o que determina esse novo jeito de viver é a eminência da morte. Como se fosse necessário, e somente nesses momentos, repensar ou autorizar-se do que se deseja. Talvez seja por isso que, nos contos, assim como na vida, o paradoxo do Natal, por exemplo, revele muitas vezes as brigas familiares não ditas. Bem como o Carnaval, quando se autoriza a realizarem-se os desejos reprimidos, mas que não serão reconhecidos depois. 

Por um lado às máscaras e véus nos protegem, como defesa, daquilo que não reconhecemos em nós mesmos. Mas nesse desconhecido também está nosso desejo.

Nesses eventos se permite transparecer aquilo que é negado ou recalcado, e que aceitamos. Permite-se também velar o que se deseja, e mostrar o que não se deseja, mesmo que não se deseje ou se saiba o que se deseja. De qualquer forma, trata-se de uma verdade, mesmo que inconsciente. 

O paradoxo está aí: as fantasias são imprescindíveis, mas o ser de cada um está também naquilo que desconhecemos em nós mesmos. E não se trata de uma contradição, de um ou outro, mas de um em correlação com o outro, coexistindo. Para além de uma mera dicotomia propondo que as existências dos opostos sustentam em paralelo o um e o outro. Os semblantes presentes nestes eventos dizem sobre uma verdade escondida que se escancara.  É assim também com aquelas brincadeirinhas, os sonhos, os equívocos, os lapsos e atos falhos. Ou seja, o inconsciente. Que também é você.

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Mirmila Musse

Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização.

Mirmila Musse

Mestre em Psicanálise pela Université Paris VIII (2011), na França. Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Associada ao Centro de Investigação da Ansiedade (Clin-a). Atua em consultório particular desde 2012. Atualmente coordena um Ateliê de Leitura em psicanálise lacaniana no Clin-a e é professora de psicologia na Universidade Paulista (Unip). Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Atua com supervisão clinica e institucional. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização. A singularidade existencial e os destinos do sofrimento psíquico individual e social.


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